Procurando notícias para me atualizar sobre as novidades do caso da mineradora Samarco, tropecei numa informação que acabou com meu bom humor. Um dos quatro sócios da Boate Kiss, aquela casa noturna da cidade gaúcha de Santa Maria, que pegou fogo em janeiro de 2013, decidiu responsabilizar o poder público pela tragédia. A madrugada de terror culminou na morte de 242 pessoas, além de ter deixado mais de 600 feridos, que lutam contra doenças respiratórias e cicatrizes psicológicas.

O empresário pede quase R$ 530 mil de indenização que, segundo seu advogado, serão doados para a Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, o grupo de familiares que busca preservar a memória e os direitos legais. É de se esperar que a Associação busque a reparação financeira tanto dos proprietários da Boate Kiss como das autoridades públicas que foram omissas com o funcionamento ilegal da casa noturna, como o Estado do Rio Grande do Sul, o município entre outros órgãos. Mas um dos sócios exigir o pagamento parece algo despropositado.

No processo aberto por ele, há a alegação de negligência por parte do poder público, que permitiu a abertura de uma boate irregular. E, por falha na fiscalização, aconteceu a tragédia. O que teria faltado, para ele, seria a indicação dos problemas no prédio para serem feitos os ajustes. Se juridicamente o sócio da Boate Kiss pode ter esse direito, moralmente o pedido parece ser um fracasso. É como se um motorista embriagado resolvesse processar a montadora do automóvel, o barman e o dono do bar onde ele bebeu todas por provocar uma batida.

As alegações beirariam o absurdo: a fabricante por não ter colocado um sistema contra motoristas bêbados e os demais por terem permitido que ele consumisse copos e copos de chope ou doses e mais doses de uísque. Parece impensável, assim como esse mártir tardio, que, três anos depois do incêndio, tentar inverter os valores da responsabilidade e da culpa. Empresas e empresários têm clareza sobre o que oferecem aos seus consumidores. É responsabilidade delas zelar e cuidar da segurança dos produtos que oferecem.

Da mesma maneira que uma indústria alimentícia não espera ser avisada pelas autoridades que estricnina tem uma alta probabilidade de provocar mortes, uma casa noturna tem conhecimento dos riscos sobre a falta de ventilação num ambiente fechado com superlotação, ausência de portas de emergência em quantidade adequada e materiais inflamáveis espalhados por todo o local. O mundo dos negócios deve coibir comportamentos enviesados. Essa nova direção do caso da Boate Kiss deve servir de alerta para o andamento da investigação sobre a mineradora Samarco. Escrevi a reportagem para a DINHEIRO na semana da tragédia e, naqueles dias próximos ao 5 de novembro, alguns especialistas já colocavam em dúvida a estrutura da barragem, que estaria sobrecarregada e com uma obra pra lá de suspeita.

A apuração do Ministério Público caminha para essa conclusão, segundo as últimas atualizações. A brasileira Vale e a anglo-australiana BHP têm demonstrado solidariedade na reconstrução. Mas, por mais que se tente reparar os prejuízos bilionários da queda da barragem, os danos são irreparáveis – principalmente pelas 17 mortes confirmadas (duas pessoas ainda estão desaparecids) e um tenebroso rastro de destruição da natureza pelos dejetos de minério de ferro. Que as responsabilidades não sejam também empurradas adiante.