27/06/2014 - 20:00
O maior algoz da nova crise da Argentina é um advogado americano de 69 anos, nascido em New Jersey e que, há mais de três décadas, vive de comprar dívidas dadas como perdidas pelos credores. Fundador da gestora de recursos Elliott Capital, Paul Singer é quem tem fornecido combustível para os pesadelos da presidente Cristina Kirchner e das autoridades econômicas do país. Após uma batalha jurídica de quase oito anos, no último dia 16 de junho, pressionada por Singer, a Argentina voltou à eminência de ter de aplicar um calote em seus credores internacionais, jogando pelo ralo uma negociação de dívidas externas que se arrasta há dez anos.
Naquela data, a Suprema Corte americana confirmou uma vitória legal obtida pela Elliott em um tribunal de Nova York em agosto do ano passado. Pela decisão, a gestora teria direito de receber 100% do que a Argentina devia antes do calote da dívida, de 2001. Após a moratória, o governo reduziu compulsoriamente o total a pagar para 30% do valor original. Depois de duas complicadas rodadas de negociação, em 2004 e em 2010, já sob os governos de Cristina e de seu falecido marido, Néstor, 92,4% dos credores concordaram com a troca de títulos.
A primeira parcela dos juros teria de ser paga nesta segunda-feira, 30 de junho, mas foi antecipada para a quinta-feira 26. Os 7,6% restantes da dívida original estão nas mãos de gestores como Singer. Não por acaso, eles foram batizados, depreciativamente, de “abutres” ou vultures, em inglês. A estratégia das aves de rapina financeiras é simples. Esses cobradores em larga escala compram empréstimos vencidos por uma fração do valor da dívida e usam todas as armas do arsenal jurídico para pressionar o devedor a pagar. Se receberem um pouco mais do que pagaram, estão no lucro.
Martin Wolf, principal articulista econômico do jornal britânico Financial Times, escreveu que às vezes as coisas dão errado, por azar ou por irresponsabilidade, e os devedores – sejam pessoas, sejam empresas ou países – não conseguem honrar seus compromissos. Por isso mesmo, cobrar dívidas é uma atividade lícita, assim como pressionar os devedores para pagar, dentro dos limites da lei. No entanto, os fundos abutres do tipo clássico vão às últimas consequências para receber o que devem. Nesse trabalho, quando os devedores são países, não importa sua capacidade de pagamento nem os impactos sociais da cobrança.
Nada mais apropriado, portanto, que chamá-los de abutres. Sua atuação não se limita a países. Empresas em dificuldades também podem ter suas dívidas vendidas a esses fundos. “A atuação deles não tem limite, eles não se incomodam de colocar a existência de uma empresa em risco só para receber dinheiro”, diz o empresário Marcus Elias, principal executivo da empresa de participação Latin American Equity Partners (Laep), proprietária da empresa de laticínios LBR, que controla a marca Parmalat.
Endividada, a empresa tinha cerca de R$ 2,5 bilhões a pagar para um grupo de dez mil credores, entre bancos e fornecedores. Segundo Elias, a companhia renegociou e pagou a todos, exceto a um fundo gerido pela empresa GLG Partners, uma gestora baseada em Bermudas. “Nós procuramos pagar a GLG, mas eles se recusaram a receber”, diz Elias. “Eles possuem garantias equivalentes a dez vezes ao seu crédito, e querem executá-las, em vez de cobrar a dívida.” A disputa nos tribunais se arrasta desde 2010.
O lance mais recente foi um pedido de liquidação da Laep na Justiça das Bermudas, que permanece sub judice. “A Justiça brasileira decretou que o crédito é nulo, mas eles continuam com o processo no Exterior”, diz Elias. O GLG não retornou os contatos. No Brasil, a atuação desses fundos é discreta, pois o mercado secundário de dívidas vencidas é pequeno e tem pouca liquidez. “Em geral, os fundos brasileiros compram grandes carteiras com muitos devedores, como as de cartões de crédito e de veículos”, diz Guilherme Ferreira, sócio da empresa paulista Jive Investments, especializado nesse tipo de crédito.
Após a compra, a Jive procura reaver o dinheiro com operações de cobrança em grande escala. O principal argumento com o devedor é retirar seu nome dos cadastros de maus pagadores, permitindo-lhe que volte a tomar empréstimos. Ferreira reconhece que o serviço é antipático, mas não se compara com profissionais como Elliott. “Os fundos americanos são extremamente agressivos. Nós não chegamos a tanto.” O caso da Argentina é didático. A vitória jurídica conseguida por Singer obriga o país sul-americano a pagar 100% do que deve a ele, ao passo que os demais credores terão de se conformar em receber apenas 30%.
A probabilidade de um credor do segundo tipo sentir-se prejudicado e também contestar a decisão na Justiça, exigindo direitos iguais aos de Singer, é enorme. No pior cenário para a Argentina, Singer poderá receber US$ 1,3 bilhão e obrigar Buenos Aires a entregar US$ 15 bilhões aos demais credores, o equivalente a mais da metade de suas reservas em moeda forte. Até o fechamento desta edição, na quinta-feira 26, a decisão ainda não havia saído. Uma reunião entre os gestores do fundo e representantes da Argentina estava agendada para a sexta-feira 27.
A questão pode parecer apenas mais um entrevero entre um especulador estrangeiro ambicioso e um governo populista, obrigado a acertar as contas com seu passado, mas a situação é mais preocupante em nível global. Nos últimos anos, o objeto dos ataques desses fundos foram países pobres, em geral nações africanas. A situação pode ameaçar a solvência do país e até mesmo o financiamento a outras nações na mesma situação. Dias antes da decisão da Suprema Corte, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou no final da primeira quinzena de junho um relatório discutindo a situação de países endividados, a Argentina em especial. O documento deverá nortear uma mudança importante na política de concessão de empréstimos do FMI.
Uma de suas constatações é de que a possibilidade de contestação de acordos entre credores e devedores por uma pequena minoria coloque em xeque mecanismos de renegociação de dívidas, que vêm funcionando bem desde os anos 1980. “Se um credor minoritário conseguir contestar um acordo aprovado pela maioria na Justiça, será muito difícil que qualquer devedor com problemas de pagamento consiga renegociar o que deve”, diz o relatório que cita nominalmente a Argentina como um caso preocupante. Os precedentes não são bons. Singer levou o governo do presidente peruano Alberto Fujimori às cordas, em 1996, em uma situação semelhante.
Investiu US$ 11 milhões para comprar 4% de sua dívida externa e ganhou mais de 400%, três anos depois. Desta vez, ele repete a estratégia, mas sob uma saraivada de críticas, até mesmo de quem é pouco tolerante com excentricidades financeiras e governos irresponsáveis. “Se a Argentina for obrigada a pagar integralmente os credores intransigentes, quem terá de arcar com isso serão os argentinos, não o governo”, escreveu Wolf, do Financial Times. “Isso é extorsão apoiada pelo Judiciário americano.” Procurados, os advogados da Elliott Capital não concederam entrevista.
——-
Leia também: