06/02/2013 - 21:00
Não são raras, no Brasil, histórias de empresas que tiveram que contratar um “despachante” para acelerar a liberação do alvará de funcionamento. Não porque o processo seja necessariamente complexo. Muitas delas têm advogados ou contadores perfeitamente capazes de preencher os formulários e protocolá-los nos órgãos competentes. Em muitos casos, todas as normas de segurança e saúde pública já foram seguidas. Mas é comum, em boa parte do País, esperar meses para que a prefeitura libere o documento necessário ao funcionamento regular de um bar, restaurante ou casa noturna. Muitas vezes, ao contratar o serviço de um desses “despachantes”, a empresa quer apenas que o processo ande.
O jeitinho que virou tragédia: a espuma irregular colocada na boate Kiss, de Santa Maria,
emitiu o gás tóxico que matou 236 jovens
“Se for uma casa nova, ela pode quebrar antes de conseguir o alvará”, diz Paulo Solmucci, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). Num cenário desses, acelerar o processo pode parecer inofensivo. Apenas um atalho. Mas pequenos atos de corrupção, mesmo que terceirizados e travestidos com uma roupagem técnica, não perdem seu caráter ilegal. Corrupção é crime não apenas quando praticada por um funcionário público, governante ou político. É crime também quando praticada por uma empresa. Seja para se livrar da punição de um ato ilegal, seja para furar a fila da burocracia. O incêndio da boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria, que matou pelo menos 236 pessoas na madrugada do domingo 27, mostra como atitudes aparentemente sem importância podem ter consequências devastadoras.
Entre os jovens que se divertiam numa festa universitária, muitos morreram queimados. Mas a maioria foi asfixiada pelo gás tóxico liberado com a queima da espuma de baixa qualidade usada irregularmente como isolante acústico na boate, o cianeto. O mesmo gás usado pelos nazistas nas câmaras que mataram milhões de judeus durante a Segunda Guerra. Na quarta-feira 30, enquanto dezenas de vítimas ainda corriam risco de vida nos hospitais gaúchos, a chanceler alemã Angela Merkel participava, em Berlim, de uma cerimônia para marcar os 80 anos da chegada de Adolf Hitler ao poder. Era importante marcar a data, disse ela, porque Hitler parecia inofensivo, e em pouco tempo transformou o país.
“Isso só foi possível devido à cumplicidade e indiferença das elites e de boa parte do povo alemão”, disse Merkel, lembrando que é preciso lutar permanentemente para garantir a liberdade e a democracia. É uma lição para todos os brasileiros do setor privado e do setor público: não há mais espaço para a conivência ou a leniência com os males que contaminam a nossa sociedade e ameaçam o futuro dos nossos filhos. A tolerância zero com o álcool em motoristas, que começou na semana passada, é prova disso. É claro que o empresário que instalou material barato na boate Kiss não tinha intenção de transformar o local numa câmara de gás nazista. Mas as autoridades locais e o Corpo de Bombeiros – que negligenciaram seu trabalho de fiscalizar um local frequentado por jovens nos fins de semana – tinham o dever de prever que essa seria a consequência das falhas na fiscalização.
Mãe protesta contra a corrupção
Está mais do que na hora de o Brasil acordar para a importância de acabar com a ineficiência na administração pública, que pode culminar numa tragédia sem precedentes. “A falta de controle permite que a corrupção se instale”, diz Claudio Abramo, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil. “Ineficiência e corrupção andam juntos”, diz ele. A dificuldade de controle externo – que deveria ser exercida pelas Câmaras de Vereadores e pela imprensa independente – torna os atos públicos cada vez menos transparentes. Um programa de fiscalização da Controladoria-Geral da União (CGU) em 1.865 municípios mostra que 20% deles têm irregularidades graves no uso dos recursos públicos (veja quadro ao final da reportagem).
Os 80% restantes têm falhas médias ou apenas formais, que podem ser decorrentes de desinformação ou despreparo do gestor. Na semana passada, a primeira reação das autoridades à tragédia de Santa Maria foi um aperto na fiscalização das casas noturnas. Em várias cidades, boates desse tipo foram fechadas. Moradores de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, descobriram que boa parte dos locais que frequentavam não tem alvará de funcionamento. Como isso é possível? “As normas técnicas brasileiras seguem os padrões internacionais, mas a maioria dos locais não está preparada”, diz Roberto Zegarra, executivo da corretora de seguros e consultoria de segurança Marsh. Já passou da hora de tratar com tolerância zero também o jeitinho brasileiro.