31/01/2014 - 21:00
A música que embala a noite argentina tem uma coreografia complexa. Para dançar o tango, são necessários habilidade, passos precisos e harmonia entre os parceiros. Quem ousa riscar o chão sem seguir essas regras pode tropeçar, passar vexame e desagradar à plateia. No cenário econômico da América Latina, quem protagoniza um triste espetáculo é a própria Argentina. Sua moeda derrete nas mãos da população e o governo insiste em políticas populistas fracassadas, como os controles cambiais e de preços. Os passos descoordenados da dupla formada pela presidente Cristina Kirchner e o controverso ministro da Economia, Axel Kicillof, têm deixado os espectadores apreensivos.
Kicillof e Cristina: dupla adota controles cambiais e de preços,
mas não consegue segurar a inflação. O Brasil já viu esse filme
O Brasil, cuja balança comercial é perigosamente dependente de um vizinho nada confiável, assiste ao drama com perplexidade. Até quando os argentinos vão insistir nesse ritmo alucinante e alimentar uma crise após a outra? Na semana passada, era possível constatar que a maxidesvalorização de 14,8% do peso argentino, ocorrida na quinta-feira 23, veio para ficar. No câmbio oficial, um dólar valia oito pesos, num movimento que já começa a se desenhar como a maior crise desde 2001, quando o país decretou a moratória da dívida. Para o Brasil, que tem na Argentina seu terceiro maior parceiro comercial, destino de 8% das exportações brasileiras no ano passado e de 20% dos manufaturados, um passo errado do país vizinho pode ter graves consequências para a indústria nacional.
“A dependência da Argentina não é algo bom para o Brasil, dado o tamanho do comércio que temos com eles”, diz Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Para o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, o quadro é preocupante. “Como não temos competitividade, vendemos commodities para o resto do mundo e dependemos da Argentina para os manufaturados”, diz Castro. O fato é que passou da hora de o Brasil repensar a relação bilateral e buscar novas parcerias comerciais.
Cuba livre: depois de ir a Davos reafirmar a seriedade das políticas econômicas do seu governo, a presidenta Dilma
foi a Cuba e encontrou-se com Cristina e Fidel Castro
Livrar-se das amarras do Mercosul e fazer acordos de livre comércio com a União Europeia e os Estados Unidos, por exemplo, são alternativas que o governo Dilma deveria considerar. Insistir no abraço de afogado da Argentina não faz sentido para um país que se esforça para estabilizar a economia há pelo menos 20 anos. Nesse período, o Brasil teve três ministros da Fazenda. A Argentina, 16. Com uma política econômica populista, que combina inflação elevada, subsídios desnecessários, déficit fiscal e maquiagem dos números oficiais, e um governo cujas decisões políticas variam ao sabor dos humores de quem comanda a Casa Rosada, aumentam as incertezas sobre o futuro da Argentina.
Há o temor de que o governo Cristina Kirchner reaja com novas medidas protecionistas ao vigoroso superávit comercial do Brasil, de US$ 3,2 bilhões (alta superior a 100%), no ano passado. Sozinho, esse resultado foi maior que o saldo total do Brasil com o mundo. Como não tem acesso ao sistema financeiro internacional, por causa do calote, a Argentina depende do superávit na balança comercial para fechar suas contas externas. “A Argentina está pagando o preço da moratória”, diz o ex-ministro Delfim Netto (leia entrevista “A Argentina brincou com fogo” abaixo). Entre 2012 e 2013, o saldo caiu de US$ 12 bilhões para US$ 9 bilhões.
Neste ano, para evitar uma piora, Cristina deve segurar suas importações. Os efeitos dessa crise batem direto no comércio brasileiro. Com o peso mais desvalorizado, as importações argentinas ficam mais caras. Por outro lado, os produtos feitos do lado de lá da fronteira tornam-se mais competitivos, no Brasil e em outros países, e podem roubar mercado brasileiro. O raciocínio é válido especialmente para o setor automotivo, que já teve redução de embarques em janeiro, de acordo com os cálculos do presidente da AEB, que acompanha as estatísticas divulgadas semanalmente pelo governo brasileiro.
A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) evita falar em problemas, e ainda mantém as previsões feitas no fim do ano passado. “Acreditamos num crescimento do mercado interno argentino”, diz o presidente da entidade, Luiz Moan, que espera uma alta de 2,1% nas exportações totais. Ele concorda, no entanto, com a necessidade de um esforço maior por parte do governo brasileiro para buscar novos clientes e reduzir a dependência dos vizinhos. “O mercado argentino é extremamente importante para nós, mas defendemos a abertura de novos mercados, seja na América do Sul, seja um acordo com a Europa”, afirma Moan.
O setor automotivo, que já montou sua operação com fornecedores dos dois lados da fronteira, tem conversado com o governo Cristina para evitar retaliações ao produto brasileiro. O problema é que o Palácio do Planalto, de mãos atadas, tem preferido exercitar a paciência. “É muito ruim ter vizinhos com problemas”, diz o ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior Miguel Jorge. “O governo pode torcer muito, ficar observando e esperando que façam as coisas certas, mas não pode interferir.” Mas não é apenas o setor de veículos que precisa driblar as decisões erráticas do governo argentino, algumas delas testadas – com grande insucesso – pelo Brasil nos anos 80 e 90, como o congelamento de preços.
É o caso da BRF, que, além de exportar frango e suínos para o país vizinho, comprou duas marcas argentinas, Pati, de hambúrgueres, e Dánica, de laticínios. “Hoje temos dificuldades na Argentina em duas áreas: com o controle de preços, já que alguns produtos são congelados abaixo da variação da inflação, e também com a liberação de importações”, diz Marcos Jank, diretor-executivo global de assuntos corporativos da empresa. Desde a desvalorização da moeda argentina, o Brasil passou a assumir uma posição defensiva no esforço de explicar, aos investidores estrangeiros, que a crise é na casa do vizinho.
Gôndolas sem produtos: controle de preços do governo tem gerado desabastecimento
nos supermercados argentinos
“Com uma economia bastante ligada à Argentina, o governo brasileiro teve o ônus de buscar se diferenciar”, afirma Alberto Pfifer, diretor-executivo do Conselho Empresarial da América Latina (Ceal). Na terça-feira 28, em viagem a Cuba, enquanto a Argentina vivia mais um dia de turbulência, a presidenta Dilma Rousseff disse que não ofereceu ajuda à colega argentina porque não foi solicitada. “A presidenta Cristina acha que lida com aquela situação e cada país tem uma característica”, afirmou Dilma, lembrando que “a situação econômica da Argentina é diferente da situação econômica do Brasil”.
De fato, a Argentina não pode mais ser colocada com o Brasil na mesma cesta dos países emergentes. Tome-se como exemplo o risco-país, calculado pelo banco JPMorgan para medir a possibilidade de um país não pagar suas dívidas. Na semana passada, o índice do Brasil estava em 269 pontos, enquanto o da Argentina batia em 983 pontos. Nossa inflação, apurada pelo IPCA, ficou em 5,91% em 2013. E, ainda que o Banco Central seja criticado por estourar o centro da meta de 4,5%, ninguém acusa o governo brasileiro de manipular os dados. No caso da Argentina, o índice oficial está em torno de 10%, mas economistas independentes afirmam que a variação correta pode ser até três vezes maior.
Na quarta-feira 29, a presidente Cristina Kirchner fez outra tentativa de reduzir o índice de custo de vida, ao pedir aos empresários que remarquem os preços para os níveis anteriores aos da desvalorização do peso. Num cenário externo mais competitivo, de redução dos estímulos do Federal Reserve à economia americana e fuga de dólares dos países emergentes em direção aos Estados Unidos (leia box abaixo), o colchão de proteção dos dois países para crises externas também é bem diferente. O Brasil tem reservas internacionais na ordem de US$ 376 bilhões e é considerado investimento seguro pelas agências de classificação de risco de crédito, enquanto a Argentina conta com apenas US$ 29,5 bilhões e virou pária do sistema financeiro internacional.
Pesos derretidos: casa de câmbio em Buenos Aires anuncia a cotação
do dólar após a maxidesvalorização
Alguns fatores, porém, tornam as duas nações semelhantes, como a crescente intervenção do Estado na economia – embora em níveis muito menores no Brasil –, a dificuldade de fazer deslanchar a modernização dos serviços públicos e manobras pouco transparentes nas contas públicas. “Todos esses aspectos fazem com que se suspeite da capacidade brasileira de não se deixar contaminar”, diz Pfifer. Na opinião de alguns analistas ouvidos por DINHEIRO, num momento de crise, o Brasil pode e deve ajudar a Argentina para minimizar o contágio nos mercados. A questão é como fazer. Do ponto de vista comercial, facilitar a entrada de produtos argentinos é uma forma de incentivo.
O economista Dante de Sica, diretor da consultoria privada portenha Abeceb.com, sugere que o Brasil faça um empréstimo de reservas para garantir que os argentinos tenham condições de bancar as importações. Mas o Banco Central brasileiro nem sequer está estudando o assunto. Entre o empresariado, que já teve na Argentina um excelente cliente, o clima também é de cautela. “A gente não ataca um bom cliente quando está em dificuldade”, diz Thomaz Zanotto, diretor do departamento de comércio exterior da Fiesp. Apesar de a balança comercial brasileira ter sido beneficiada pelas compras dos argentinos em 2013, exportar para lá se tornou um problema para as companhias brasileiras, que, desde 2011, têm de lidar com uma série de restrições, como a exigência de exportar um volume equivalente ao das importações.
Recentemente, dois empresários brasileiros que foram se queixar ao ministro Kicillof da dificuldade na liberação de insumos ouviram que a situação não iria mudar. Para muitos argentinos, a sensação é de que o país não tem um rumo a seguir. “O governo está tendo muitas contradições nos aspectos da política econômica”, diz Dante de Sica. “Uma hora faz uma coisa e depois faz outra.” Na avaliação do consultor Thiago de Aragão, da Arko Advice, que esteve na Argentina há duas semanas conversando com integrantes do governo, o problema também é político. “O fator número 1 da crise é a falta de coesão política. É como se o sistema partidário argentino fosse um grande PMDB, todo dividido em grupos”, diz Aragão. Para o Brasil, o tango desafinado não é nada animador.
“ A Argentina brincou com fogo”
O ex-ministro da Fazenda Delfim Netto diz que a crise é consequência da moratória de 2001.
Por Luís Artur nogueira
Qual é a avaliação do sr. sobre o ministro da Economia da Argentina, Axel Kicillof?
Ele é um profissional bastante razoável, que tem uma tendência para o marxismo e para o keynesianismo, uma combinação meio mística dessas duas coisas. A decisão de desvalorizar o peso está correta. Na verdade, a Argentina está pagando o preço do default de 2001. Ficaram brincando com fogo e quando pegou fogo de verdade não tinham extintor. Agora, eles não têm o menor auxílio externo para obter capital.
Mas a desvalorização do peso não vai piorar a inflação?
De fato, eles estão muito assustados com o impacto nos preços. Para que a inflação não anule a desvalorização, é preciso uma profunda redução do salário real. E mais: para não deixar a inflação explodir, não adianta uma política de juros, porque não há movimento de capitais. É preciso uma política fiscal dura, mas não sei se estão preparados. Esse pode ser o começo da solução ou realmente o fim do governo Cristina Kirchner.
O Brasil pode ser contaminado pela crise argentina?
Acho que não há mais a menor confusão entre Brasil e Argentina no mercado. Temos comportamentos bem diferentes.
O Brasil está perdendo tempo com o Mercosul?
Nós temos de reconhecer que o mundo está indo numa direção e nós, com o Mercosul, para outra. Mas, agora, temos de ajudar a Argentina, pois nosso vizinho compra uma parcela importante dos nossos manufaturados.
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Janet Yellen liga o aspirador
Nova redução do programa de ajuda econômica americana eleva os juros nos EUA e drena dólares dos países emergentes
Por Cláudio Gradilone
A instabilidade cambial da Casa Rosada, que no dia 23 de janeiro proibiu investimentos dos argentinos em dólares – para liberá-los apenas 24 horas mais tarde –, veio no pior momento possível para os mercados emergentes. Poucos dias depois, na quarta-feira 29, o Fed, banco central americano, confirmou as expectativas do mercado e reduziu novamente em US$ 10 bilhões por mês seu pacote de ajuda econômica. Em fevereiro, a injeção mensal de recursos na economia (por meio da recompra de títulos públicos) cairá para US$ 65 bilhões, cifra que deverá chegar a zero antes do fim de 2014.
O FED enxuga mercado…Ajuda nos EUA cai para US$ 65 bilhões por mês
Esse movimento, que a partir de agora será coordenado por Janet Yellen, nova presidente do Fed, causará choro e ranger de dentes nos países emergentes. A redução da oferta de dólares deverá elevar os juros nos Estados Unidos, com um impacto semelhante em outros países desenvolvidos. “Isso será como um aspirador de pó, que vai sugar os dólares disponíveis”, disse Alexandre Tombini, presidente do Banco Central (BC), em uma palestra em Londres, na segunda-feira 27. A reação foi imediata. Logo após o anúncio, o dólar subiu para R$ 2,4397, maior valor desde agosto de 2013. Países como Turquia, África do Sul e Índia também sentiram fortes pressões em suas taxas de câmbio, e seus banqueiros centrais tiveram de agir para impedir um esvaziamento de seus cofres pelo aspirador de Yellen.
… e os BCs seguram os dólares: Da esq. para a dir., Erdem Basci (Turquia),
Raghuram Rajan (Índia), Gill Marcus (Àfrica do Sul) e Alexandre Tombini
Na madrugada da terça-feira 28, o banco central da Turquia elevou sem aviso prévio seus juros referenciais de curto prazo de 7,5% para 12% ao ano, de modo a sustentar a lira turca. A decisão levou o governo indiano a elevar os juros em 0,25% para 8% ao ano, também para defender a rúpia. No dia seguinte, foi a vez do BC da África do Sul. Segundo o economista Pedro Paulo Silveira, da Vetorial Asset, esses solavancos não devem acabar tão cedo. A turbulência é provocada pela incerteza em relação à solvência dos emergentes, o que abre espaço para ataques especulativos. “O Brasil está em uma situação mais confortável devido à abundância de reservas, mas países como Índia e Turquia estão mais vulneráveis”, diz Silveira.