Na quinta-feira, 15 de setembro, o CEO da desenvolvedora de software brasileira Totvs, Laércio Cosentino, tomou café da manhã no Rio de Janeiro com um cliente. No almoço, estava em Belo Horizonte, conversando com outro empresário do setor de saúde. No fim do dia, encontrou-se com um varejista em Londrina (PR). A maratona de Cosentino terminou com um jantar em São Paulo, com dirigentes do setor de serviços. Desde que Rodrigo Kede, escolhido para sucedê-lo, deixou a empresa no começo de janeiro deste ano, Cosentino reassumiu todas as funções executivas de maneira ainda mais revigorada. Questionado se tem planos de se aposentar, respondeu, entre risadas. “Claro. Ninguém vai me aturar aqui por tanto tempo.” Nesta entrevista, Cosentino fala do ambiente brasileiro para as startups e discute as reformas que considera essenciais para que o Brasil não tenha um voo curto, como o de galinha. “Não dá mais para continuar da maneira que estamos”, afirmou ele. “Do contrário, faremos pequenas reformas que não vão mudar o País.”

DINHEIRO – A Totvs surgiu da consolidação de uma série de empresas brasileiras de software. Com isso, conseguiu enfrentar grandes companhias internacionais, como SAP e Oracle. Agora, há um novo perigo, que são as startups que oferecem software na nuvem. Essa é uma ameaça para a Totvs? 
LAÉRCIO COSENTINO – 
Estamos observando com atenção o que vem sendo feito pelas startups, especificamente as fintechs (startups financeiras). E, ao mesmo tempo, trabalhamos para que a Totvs seja uma eterna startup. Isso impõe a todas as software houses, não só à Totvs, a necessidade de pensar em coisas mais simples, mais fáceis, rápidas de implementar, de baixo custo e na nuvem.

DINHEIRO – O que o sr. faz para manter o espírito de uma startup dentro da Totvs?
COSENTINO –
 Nós nos desafiamos todos os dias. Se não pensar o que vamos entregar daqui a cinco anos, ficamos para trás.

DINHEIRO – O sr. poderia dar uma exemplo?
COSENTINO – 
Hoje, temos um laboratório próprio, em Mountain View, no Vale de Silício, na Califórnia. Lá, há um grupo de 20 pessoas pensa em coisas diferentes para a Totvs. Criamos também um comitê de estratégia, cujo objetivo é pensar a Totvs daqui a 10 anos. Com isso, nascem as ideias que podem ser colocadas em prática. Hoje, tudo precisa caber aqui (mostra um smartphone). Nada atualmente é desenvolvido sem pensar na mobilidade.

DINHEIRO – A Totvs criou um braço de investimento em startups. Por quê?
CONSENTINO –
 Porque queremos estar próximos das startups. Com isso, consigo atrair para os meus produtos os melhores componentes. Antigamente, os softwares eram fechados, complexos e grandes. Hoje, são pequenos, não complexos e abertos. Com um braço que investe em startups reconheço que é mais fácil apoiar quem está desenvolvendo ao redor do que fazer tudo sozinho. Uma das empresas que investimos é a GoData, uma startup americana de business intelligence, que hoje é um dos motores de informação de nossa plataforma.

DINHEIRO – O Brasil já conta com um ecossistema de startups bem estabelecido?
COSENTINO – 
Se observarmos o número de empreendedorismo no Brasil, há muita coisa legal acontecendo. Mas se olharmos o arcabouço legal e fiscal, há muito para evoluir. A Endeavor (ONG da qual Cosentino é conselheiro) fez um trabalho para reduzir o número de dias para a abertura de uma empresa no Rio Grande do Sul. O ambiente está melhorando, há vários mecanismos de financiamento para startups.

DINHEIRO –Em um artigo, sr. defendeu que EUA, Canadá, Coreia do Sul e Israel são países que contam com boas políticas de inovação. Algum deles poderia ser exemplo para o Brasil?
COSENTINO – 
Há vários mecanismos ao redor do mundo para apoiar a inovação. Acredito que deveríamos trabalhar na desregulamentação, criando um ambiente favorável. Por ambiente favorável, entendo que deve ser fácil e rápido abrir uma empresa, bem como ter um sistema tributário mais simples. Além disso, ter um sistema trabalhista que não gere passivos para as empresas no futuro.

DINHEIRO – Apesar da melhora do ambiente, o Brasil não consegue criar startups que evoluam e passem a valer bilhões de dólares. Por que ainda não surgiu um unicórnio brasileiro, termo usado no Vale do Silício para empresas com valor superior a US$ 1 bilhão? 
COSENTINO –
 O brasileiro desenvolve empresas para o Brasil. E o Brasil não é um mercado grande o suficiente para que as startups possam valer US$ 1 bilhão. Em Israel, por exemplo, se o empreendedor pensar apenas no mercado local, está morto. As startups do Vale do Silício nascem em um país que tem mercado. O que falta para o Brasil é pensar em criar coisas para o mundo.

DINHEIRO –Muitas das startups que nascem aqui são cópias do Uber ou do Airbnb. Por que ainda existe a cultura da cópia ou do clone?
COSENTINO –
 Se você pensar em inovação disruptiva, que quebrem modelos estabelecidos, você está certo. O Brasil talvez não seja o local onde essas empresas vão nascer. Mas em um mundo conectado e sem fronteiras cada vez mais brasileiros estão mudando para a Califórnia para criar suas empresas por lá. As pessoas estão indo para lugares onde encontram mais facilidade e incentivos, com maior qualidade de mão de obra, e mais perto do mercado consumidor.

DINHEIRO – Por que isso acontece?
COSENTINO –
 É uma questão do ambiente de negócio. O Brasil agora começa uma agenda de reformas. Veja o exemplo da reforma trabalhista. O ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, falou em uma jornada de 12 horas e foi uma grande confusão. Mas no setor de tecnologia da informação, o horário e o local de trabalho pouco importam. Quando se trabalha com tecnologias disruptivas não significa que você vai ter uma boa ideia em um horário fixo de trabalho. Pode ser que a ideia aconteça à meia noite. Precisamos adequar as remunerações não só pelo tempo que o funcionário fica sentado, mas também pelo resultado que traz à empresa.

DINHEIRO – Como fazer isso? 
COSENTINO –
 Se formos mexer na CLT como um todo, é impossível. Defendo que para salários acima de R$ 10 mil deve haver livre negociação. Se quiser trabalhar segunda, quarta e sexta, tudo bem. Não dá para ter uma legislação que trata todos como hipossuficientes. A lei diz hoje que não se pode ter mais de duas horas extras. Mas imagine uma pessoa atendendo um cliente e as horas extras acabarem. Na prática, ele precisa ir embora. Isso, no entanto, não acontece. Mas depois que o empregado sai da empresa, ele a processa e ganha na Justiça do Trabalho. Estamos gerando processos e mais processos, numa coisa que vai na contramão de vários modelos notórios.

DINHEIRO – Em sua opinião, então, a reforma trabalhista é a mais urgente? 
COSENTINO –
 Acredito que é um conjunto de reformas, que inclui a trabalhista, mas também a tributária, para cobrar impostos de maneira mais inteligente, e a política. Não dá para ter mais de 30 partidos. Isso é um absurdo.

DINHEIRO – Mas essas são as reformas mais difíceis de serem aprovadas, pois são muito polêmicas e dividem empresários e trabalhadores?
COSENTINO –
 Sem as reformas, vamos ficar voando como uma galinha. Não dá mais para continuar da maneira que estamos. Do contrário, faremos pequenas reformas que não vão mudar o País. Em vez de a previdência estourar em 2045, vai quebrar em 2055. Com isso, estruturalmente, o País não muda.

DINHEIRO – Mas o sr. acredita que é possível fazer essas reformas?
COSENTINO –
 Elas têm de ser feitas. Precisamos descobrir espaço para fazer. Mas é necessário ter vontade política e da própria sociedade. Mas é claro que não são reformas simples.

DINHEIRO – Sem as reformas, o Brasil não volta a crescer?
COSENTINO –
 Acredito que vamos retomar o crescimento. Mas, sem as reformas, vamos pagar o preço. De novo: vamos ficar voando como uma galinha. Em 2017, o Brasil vai voltar a crescer. Em 2018, será ainda melhor. Mas não podemos gerar mais nenhuma ação trabalhista em nenhuma empresa. Isso precisa ser uma exceção.

DINHEIRO – O sr. voltou para o cargo de CEO depois que Rodrigo Kede, que estava sendo preparado para sucedê-lo, deixou a empresa. O plano de sucessão parou? 
COSENTINO – 
Entendemos que muitas vezes você tem a oportunidade, mas não tem a pessoa. Em outras, tem a pessoa, mas não a oportunidade. Neste caso, eu imaginava que tinha a pessoa e antecipei a sucessão. Falhamos. Não deu certo. Neste momento, estou trabalhando para que a companhia gere um sucessor no momento adequado. Mas essa pauta saiu da companhia.

DINHEIRO – O sr. não pensa em se aposentar?
COSENTINO –
 Em algum momento, com certeza. Ninguém vai me aturar aqui por tanto tempo (risos).

DINHEIRO – O sr. fez dezenas de aquisições para dar musculatura à Totvs. Segue alguma fórmula?
COSENTINO –
 Primeiro, você precisa saber o que quer. O meu objetivo era consolidar o mercado. Segundo ponto: é preciso gerar recursos financeiros para fazer essa consolidação. Terceiro: conhecer bem o mercado, saber quem é quem e que empresas podem agregar valor. O último ponto é ter relevância, o que torna as aquisições mais fáceis. As grandes cabeças de software brasileiro de alguma maneira estão com a Totvs. Todos acabaram ficando com um pedaço da Totvs.

DINHEIRO – Quem o sr. considera que foi um modelo em sua trajetória?
COSENTINO – 
Não existe uma pessoa. Gosto de prestar atenção no que as pessoas falam para que possa transformar em algo que aplico na minha atividade.

DINHEIRO – O sr. pode dar um exemplo disso?
COSENTINO – 
Recentemente, um investidor me perguntou o que eu estava fazendo para que a Totvs não se transformasse em uma Chernobyl (cidade russa onde aconteceu um dos mais sérios acidentes nuclear da história, em 1986). Brinquei com ele dizendo que me considerava inteligente, mas que não conseguia ver correlação nenhuma com o setor de software. Ele me rebateu: “para mim, as grandes software houses são verdadeiras usinas atômicas, com um monte de problemas. Quem está dentro não sai, e quem está fora começa a pensar em não entrar. Algumas vão ser desativadas, outras vão permanecer. Mas formas alternativas de energia vão ser construídas ao redor. E gradativamente você diminuirá a dependência da energia nuclear, até um belo dia esquecer”. É exatamente o que está acontecendo com o setor de software, com a mobilidade e a computação em nuvem.

DINHEIRO – A Totvs está preparada para não ser uma Chernobyl?
COSENTINO –
 Daqui a cinco anos, quase 100% da receita da Totvs vai vir do modelo de assinaturas, no modelo de computação em nuvem.