08/08/2014 - 20:00
O escritor, poeta e dramaturgo francês Jean Cocteau (1889-1963) afirmou, certa vez, que os melhores livros são os que semeiam interrogações. Se isso for verdade, a última iniciativa da editora e livraria Saraiva é uma obra e tanto, pela confiança com que o grupo decidiu investir em um mercado que atualmente gera mais ceticismo do que lucros: o dos leitores digitais. O Lev, e-reader da Saraiva, chegou às prateleiras na terça-feira 5 com a missão de ser bem-sucedido em uma área na qual gigantes do setor patinam. A Barnes & Nobles, maior rede de livrarias dos Estados Unidos, por exemplo, viu a receita com o seu leitor digital, o Nook, cair 35% no ano fiscal de 2014, encerrado em maio, somando US$ 505 milhões.
Além disso, o mercado americano de e-books está perdendo o fôlego e cresceu apenas 3,8% no ano passado, para US$ 1,3 bilhão, após anos avançando ao ritmo de dois ou três dígitos. No Brasil, onde a Saraiva vai atuar, a situação é mais complicada. O mercado de livros digitais é minúsculo. Segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL), as vendas de obras digitalizadas cresceram impressionantes 225%, mas representaram apenas 0,2% das vendas das editoras, ou R$ 12,7 milhões. “Os livros digitais ainda estão no vermelho no Brasil”, diz Karine Pansa, presidente da CBL.
Esses números, no entanto, não intimidam a Saraiva. “Essa não é apenas a semente da Saraiva do futuro”, diz o presidente da empresa, Michel Levy. “A digitalização do conteúdo é um processo inexorável.” Segundo o executivo, a Saraiva tem algumas armas para vencer essa guerra. A principal delas é a rede de 114 lojas em todo o País, por onde circulam 60 milhões de pessoas por ano, e que receberá uma maciça campanha de vendas do Lev. Outra é catálogo digital de 30 mil títulos em português e 450 mil obras estrangeiras.
A companhia também vai aproveitar a experiência dos clientes com o seu aplicativo para leitura digital, o Saraiva Reader, que já conta com mais de quatro milhões de downloads de obras desde seu lançamento, em 2010. “Temos tudo para sermos bem-sucedidos nesse negócio”, afirma Levy. Nada disso, porém, impressionou a concorrência até agora. “A Saraiva não tem foco no digital”, afirma Camila Cabete, diretora de relações com editoras no Brasil da canadense Kobo, que pertence à japonesa Rakuten. Desde 2012, a Kobo fornece os e-readers da Livraria Cultura no Brasil.
“A operação da Saraiva é muito pesada”, diz Camila. O peso de carregar uma rede física de lojas fica evidente nos números da Saraiva. Em 2013, o negócio de varejo rendeu uma receita líquida de R$ 1,7 bilhão. Os custos para manter a estrutura, porém, fizeram com que o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) fosse de apenas 41 milhões, com margem de 5,8%. Além disso, o negócio deixou um prejuízo líquido de R$ 16 milhões. Já a editora, cujo carro-chefe são os livros universitários e jurídicos, obteve uma receita bem menor: R$ 470 milhões, mas as linhas que interessam são mais saudáveis.
Sua margem de ebitda é quase o dobro do varejo, 10,7%, e sua geração de caixa ficou em R$ 54 milhões. Por fim, contribuiu com um lucro de R$ 13 milhões. Segundo Levy, o lançamento do Lev não está relacionado a uma eventual decisão de enxugar o peso da estrutura física do varejo. “São negócios distintos”, diz ele. “Os e-books não geram gastos com lojas físicas ou transporte, mas apresentam margens menores.” Para o executivo, o sucesso virá, justamente, do aumento das vendas de livros digitais. Segundo a DINHEIRO apurou, a Saraiva pretende lançar também um serviço de assinatura digital que vem sendo chamado no mercado de “Netflix dos livros”.
Pelo menos uma grande editora já teria topado a ideia. Questionada sobre esse serviço, a Saraiva não nega nem confirma. “Estamos sempre de olho em novos negócios”, limita-se a dizer Deric Guilhen, diretor de produtos digitais da Saraiva. Outra frente são as parcerias com universidades e escolas técnicas para digitalizar seu conteúdo. “Conversamos com várias universidades”, afirma Levy. “É uma questão de tempo para que esse mercado convirja para o formato digital.”
Se depender da confiança da Saraiva, sua história terá um final feliz como o da Amazon, que faturou pelo menos US$ 265 milhões com e-books no ano passado e vendeu mais de 20 milhões do leitor digital Kindle, segundo a consultoria americana Trefis. O risco, para alguns, é que tudo não passe de um conto de fadas. O que aconteceu com a indústria fonográfica, que demorou a adotar a música digital, mostra que não há outro caminho à Saraiva a não ser virar a página.