Na cena ao lado, as vítimas fictícias, o ato de rendição simulado e o palco improvisado no aeroporto do Galeão, dias antes da Olimpíada, chamaram a atenção para um problema real: o atraso nos salários dos servidores estaduais. Não apenas no Rio de Janeiro, mas em Estados por todo o País, a deterioração fiscal beira a calamidade pública e compromete a capacidade de pagar em dia funcionários como bombeiros e policiais, num sinal de que a Lei de Responsabilidade Fiscal vem falhando em garantir a sustentabilidade dos cofres regionais.

Dezesseis anos após a criação do marco voltado a fortalecer os orçamentos públicos, governadores são pressionados a ir além, para evitar a repetição de imagens como as do Galeão, e agora trabalham para criar suas próprias leis de responsabilidade fiscal. A norma regional já se tornou uma realidade no Rio Grande do Sul e há textos prontos ou em formulação de Norte a Sul do País. O tema, que vinha sendo discutido principalmente por aqueles com maior dificuldade, como os gaúchos, virou um assunto nacional no processo de renegociação das dívidas estaduais.

O texto inicial do acordo, que alonga os prazos dos saldos em aberto com a União, previa como contrapartida a criação de leis estaduais de responsabilidade, mas a exigência foi retirada no Congresso. Em geral, os projetos de lei regionais tentam criar uma rigidez extra aos gastos com servidores e em temas como despesa com propaganda e incentivos fiscais. Pela lei federal, por exemplo, os Estados não poderiam gastar com pessoal mais do que 60% da receita corrente líquida. Isso não impediu que as despesas com o item descolassem da arrecadação nos últimos anos e crescessem até o dobro em alguns casos.

Quando a recessão chegou e a torneira de empréstimos federais secou, muitos se viram no limite. “A Lei de Responsabilidade Fiscal foi um marco, mas tornou-se insuficiente”, diz Giovani Feltes, secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul. Com a aprovação da lei de responsabilidade gaúcha, em janeiro, reajustes a servidores acima da inflação terão de respeitar um limite de 25% do avanço real das receitas. Se alta real for de 10%, por exemplo, os salários só podem subir 2,5% além da inflação. Novos dispositivos também foram criados para evitar que governadores autorizem reajustes para gestões seguintes.

“O Rio Grande do Sul empurrou com a barriga os problemas, com fontes alternativas como financiamentos e depósitos judiciais, mas elas secaram”, diz Feltes. O pagamento da folha estadual consome 76% das receitas, quando considerados todos os gastos, e também sofreu atrasos. Por mais de uma vez, o Estado deixou de receber recursos federais por falhas nos pagamentos das parcelas da dívida. Em Tocantins, a proposta de lei de responsabilidade prevê que os cargos de comissão não superem 10% do total de funcionários, além de um teto para os gastos com propaganda oficial. Os textos regionais também avançam numa lacuna até hoje em aberto no governo federal, ao criar conselhos de gestão fiscal, incluídos em Goiás e no Rio de Janeiro.

As iniciativas buscam deixar mais claro o critério de contabilização do gasto com pessoal, tentando incluir itens que geram custos e por vezes ficam fora da rubrica, como pensões e auxílios. “Como posso estar cumprindo o teto se não há dinheiro para a folha? Na prática, eu cumpro os 60%, mas passo um cheque equivalente a 75%”, diz Ana Carla Abrão, secretária da Fazenda de Goiás. “A lei estadual busca tornar o orçamento real e não uma peça de ficção, sendo um instrumento para o reequilíbrio de longo prazo.” Para que se tornem realidade, as leis regionais de responsabilidade precisam ser aprovadas nas Assembleias Legislativas, um processo que deve ser marcado por resistência, desde sindicatos de servidores até empresários, como mostram experiências recentes.

No Rio Grande do Sul, houve intenso protesto na votação e a vitória é atribuída ao grau de profundidade da crise. No Rio de Janeiro, o texto chegou a ser enviado ao Legislativo, mas foi retirado em meio à pressão de manifestantes. “Deve haver resistência de toda natureza, mas é um desafio que temos de enfrentar”, afirma Edson Ronaldo Nascimento, secretário da Fazenda do Tocantins. Com a aprovação do projeto de renegociação das dívidas no Congresso, o argumento dos governadores ganharia um reforço. Os dispositivos estaduais ajudarão a cumprir a principal contrapartida do texto, que limita o avanço das despesas à inflação do ano anterior.

Para os especialistas, o esforço da consolidação fiscal deve ir além.“São necessárias também outras medidas, como as reformas dos regimes de previdência dos servidores e a tributária, que possibilite resgatar o poder de arrecadação dos Estados”, diz José Barroso Tostes Neto, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Sem avanços nas questões estruturais, governadores voltarão a conviver com encenações como as do aeroporto; senão no presente, num futuro próximo, repetindo a falência de negociações como a que criou a Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, e que agora volta a se observar.