No dia 9 de fevereiro, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional o artigo 139 do Código Civil que permite a proibição de participação em concursos e licitações públicas e a suspensão do passaporte e da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) em casos de inadimplência, desde que resguarde a dignidade humana e os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Na prática, a decisão autoriza juízes de instâncias inferiores a adotarem medidas coercitivas em processos judiciais contra caloteiros contumazes. São diversos os casos, por exemplo, de condomínios que entram na Justiça contra devedores de mensalidades, em que os síndicos comprovam o poder de pagamento dos inadimplentes com fotos nas redes sociais de automóveis de luxo ou de viagens internacionais. Por outro lado, os juízes ao considerarem os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não podem bloquear a CNH de caminhoneiros ou motoristas de aplicativos, que dependem da profissão para honrar seus compromissos. Em outras palavras, os juízes terão que praticar a empatia para que a Justiça possa punir os maus pagadores, e ao mesmo tempo, preservar pessoas físicas com dificuldades momentâneas de renda.

GRANDES DEVEDORES Se o governo federal tivesse o mesmo poder da Justiça para bloquear os inadimplentes, a situação do caixa provavelmente seria outra. Embora o Tesouro pague religiosamente os juros de sua dívida de R$ 5 trilhões ao mercado, a Receita Federal enfrenta dificuldades para receber os impostos de poucos contribuintes, alguns casos estão pendentes há décadas. Segundo dados da Receita Federal, empresas e instituições possuem um passivo tributário superior a R$ 1 trilhão concentrado em grandes devedores. Desse montante, 160 processos com valores superiores a R$ 1 bilhão totalizam R$ 444 bilhões; 1.250 processos com valores entre R$ 100 milhões e R$ 1 bilhão somam R$ 337 bilhões; 4.507 casos com montantes entre R$ 15 milhões e R$ 100 milhões; e 52.352 pendências fiscais entre R$ 52.352 e R$ 15 milhões. Segundo profissionais de escritórios jurídicos consultados pela DINHEIRO, somente o setor bancário possui pendências de cerca de R$ 100 bilhões com o Fisco, com base nos formulários de referência entregues a reguladores.

MEDIDAS COERCITIVAS No dia 9, o plenário do STF considerou a validade da suspensão da CNH e do passaporte de inadimplentes. (Crédito:Divulgação)

Para o sócio da área tributária do Cescon Barrieu Advogados Hugo Leal, as principais disputas dos bancos com a Receita estão relacionadas com casos antigos. “A amortização de ágio em fusões e aquisições para fins fiscais é um tema que não está pacificado no Carf (o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais)”, afirmou. Leal explicou que a Receita Federal sempre cobra o Imposto de Renda (IR) nessas operações, e que bancos e empresas contestam essa cobrança. “Com o voto de qualidade previsto na medida provisória (MP) 1.160 de 12 de janeiro, o empate que antes era favorável ao contribuinte, agora pode tender para o arrecadador”, disse.

O Carf é um órgão colegiado de governo, não um tribunal, onde os contribuintes possuem metade dos assentos (quatro) e a Fazenda, outros quatro. Leal aponta a possibilidade de o Ministério da Fazenda conseguir controlar o órgão por meio do voto de qualidade do presidente do Carf com a aprovação da MP pelo Congresso. “Os contribuintes estão conseguindo, por meio de recursos, adiar as votações até que a MP seja votada pelos parlamentares. Se aprovada como está, a MP do voto de qualidade favorece a Fazenda transformando o Carf num órgão arrecadador do governo”, afirmou.

Questionado por exemplos no setor bancário, Leal citou a aquisição do Unibanco pelo Itaú, em 2008. “A discussão neste caso é sobre o imposto sobre ganhos de capital na aquisição do Unibanco. O valor (atualizado) é de R$ 70 bilhões e o julgamento do caso do Itaú está suspenso no Carf por uma decisão da Justiça”, disse.

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“Se aprovada como está, a MP do voto de qualidade favorece a Fazenda transformando o Carf num orgão arrecadador do governo” Hugo Leal Sócio do Cescon Barrieu.

Mariana Dias Arello, advogada tributarista da Briganti Advogados, também citou que a Receita está cobrando de grandes bancos o Imposto de Renda que incide sobre o pagamento de bônus para executivos e funcionários do setor. “A Receita entende que na maioria dos casos, o pagamento de participação nos lucros é salário disfarçado, que não está recolhendo IR”, afirmou. A advogada avalia a MP do voto de qualidade que será discutida no Congresso, passará por modificações antes de ser aprovada. “Na maioria das disputas, a jurisprudência não está consolidada”, afirmou. “No Congresso, a previsão é que a MP seja aprovada desde que exista acordo entre a Fazenda e o contribuinte”, disse. Mariana explica, que na possibilidade de acordo entre as partes, o contribuinte deixará de pagar multas e juros e poderá parcelar o principal. “É como um Refis”, disse.

Porém, mesmo com as eventuais mudanças no Congresso, Mariana acredita que grandes empresas e bancos vão continuar recorrendo na Justiça nos casos de somas bilionárias. Hugo Leal, do Cescon Barrieu, também aponta para essa mesma tendência. “Os contribuintes estão ganhando mais causas indo para a Justiça”, afirmou Leal. Nessa toada, só vai restar ao governo pedir na Justiça o bloqueio da CNH e do passaporte dos banqueiros e empresários.