05/11/2021 - 11:30
O diplomata britânico Henry Wotton (1568-1639), um dos mais influentes da Europa em sua época, definiu a diplomacia como a arte de “um homem correto enviado ao estrangeiro para mentir por sua pátria’’. Trata-se de algo semelhante à missão, em território nacional, dada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, aos novos secretários Esteves Colnago (designado para Tesouro e Orçamento) e Paulo Valle (Tesouro). A ordem é convencer o mercado e os investidores de que as contas públicas (já descontroladas) não sairão de controle com o rompimento do teto de gastos, que poderá ser agravado com a determinação do presidente Jair Bolsonaro — chancelada por Guedes — de pagar um Auxílio Brasil de R$ 400 até o fim de 2022, acima do que cabe no Orçamento em ano de reeleição.
Para o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, as tentativas de construir uma narrativa (palavra usada à exaustão no vocabulário bolsonarista) que não condiz com o comportamento prático do governo não convence a ninguém. “Está mais do que claro que a reeleição do Bolsonaro é a prioridade de Guedes’’, afirmou Vale. “Não me parece que ele está preocupado se a economia vai sair bem dessa disputa.’’
Colnago e Valle, no entanto, estão com os discursos bem afinados. No mesmo dia em que foi nomeado, Colnago liderou uma entrevista para imprensa para explicar o impacto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos precatórios nas contas públicas, aprovada em primeiro turno na Câmara, na madrugada da quinta-feira (4), por 312 votos a 144. A PEC ainda precisa passar por um segundo turno de votação na casa antes de ir para o Senado. A dupla de novos secretários, no entanto, afirma que a única saída seria a pedalada nos precatórios. “O Ministério da Economia não trabalha com outro plano que não seja a PEC”, adiantou Colnago. “Não lidamos com outra possibilidade.’’ Profissional com boa bagagem na administração pública, foi ex-ministro do Planejamento no governo Michel Temer.

“O objetivo aqui é deixar muito claro que a trajetória está preservada”, afirmou Colnago. “Em momento algum estamos colocando em risco a trajetória de ajuste. Ela está preservada.” A mutreta da falácia narrativa começa por defender uma PEC que dá calote em dívida pública já discutida na Justiça. Além disso, se o problema fosse apenas questão de garantir o reajuste do Bolsa Família — futuro Auxílio Brasil — e ampliar sua abrangência, seriam precisos para 2022 mais R$ 50 bilhões sobre os R$ 34 bilhões destinados este ano. Só que a PEC livraria do teto de gastos, além desses R$ 50 bilhões, outros R$ 41,6 bilhões para despesas que nada tem a ver com ajuda aos mais necessitados. Grana para a reeleição, em português claro.
Na tentativa de ajudar o colega, o secretário do Tesouro, Paulo Valle, apresentou as previsões de gastos federais, o resultado primário e dívida bruta, em casos com e sem a aprovação da PEC. Pelos dados apresentados por ele, o déficit primário vai piorar em 2022, para 1,4% do PIB, contra uma previsão negativa em 0,5% antes da PEC. A dívida bruta, que anteriormente seria reduzida a 80% do PIB em 2022, deve ficar em 81%. “Acreditamos na estabilidade da dívida pública”, disse Valle. “A volatilidade pontual do mercado não comprometerá as projeções da dívida. Assim que for definida a versão final da PEC, esperamos que as expectativas fiquem ancoradas”, afirmou.
DESESPERO O esforço da nova equipe econômica sobre o tema da flexibilização no teto de gastos faz mais do que sentido. Se aprovado, vai criar R$ 91,6 bilhões para despesas extras em 2022, segundo projeção do Ministério da Economia. Uma fatia do recurso vai para as chamadas vinculações, que são condenações judiciais do governo com setores essenciais, como saúde, educação e sistema Judiciário. O governo também vai precisar destinar R$ 3,9 bilhões para cumprir o piso da saúde e R$ 1,8 bilhão para o mínimo da educação.

Com a PEC, o governo ainda terá um cheque em branco de R$ 300 milhões extras para emendas individuais e de bancada, propostas por parlamentares e que não incluem as chamadas emendas de relator, definidas pelo Congresso na hora da votação do Orçamento e que inflam a capacidade do governo em articular apoio dentro do Legislativo. Para este ano, o governo terá um espaço extra de R$ 15 bilhões, que deve ser usado para bancar o reajuste do Auxílio Brasil, para a compra de vacinas e para o pagamento de R$ 4,5 bilhões em despesas com auxílio emergencial a pais monoparentais, após a derrubada de um veto presidencial à ajuda ainda em 2020. Ou seja, para cumprir as promessas do presidente Bolsonaro, o ministro Guedes e os secretários Colnago e Valle terão de aprimorar muito a técnica de diplomacia descrita por Henry Wotton há cinco séculos.