31/10/2014 - 20:00
Nos últimos anos, a indústria automobilística brasileira viveu dois extremos. O primeiro, entre 2002 e 2012, de crescimento acelerado e euforia das montadoras. Crédito farto, lançamentos atrás de lançamentos e um ciclo de investimento jamais visto – com R$ 70 bilhões anunciados até 2017 – alçaram o País à quarta colocação no ranking dos maiores mercados automotivos do planeta. O Brasil ganhou os holofotes das principais fabricantes globais de automóveis. Mas, tudo mudou. Desde o ano passado, o setor tem colecionado notícias ruins e os ânimos esfriaram.
Esse clima de baixo-astral é visível no Salão do Automóvel de São Paulo. Na inauguração da mostra deste ano, na última semana, Issao Mizoguchi, presidente da Honda na América do Sul, e o presidente mundial da GM, Dan Ammann sintetizaram o clima generalizado com termos como “amargo” e “volátil”, especialmente para descrever as expectativas para o mercado do País em 2015. Para grande parte dos executivos, será mais um ano perdido, sem crescimento nas vendas, no terceiro período de estagnação após uma década de avanço ininterrupto. A expectativa de um ano morno em 2015, compartilhada por ao menos sete montadoras, é encarada até com certo alívio pelo setor.
Neste ano, o mercado deve encerrar com uma retração que pode chegar a 10% nas vendas nas contas de algumas empresas. A associação das montadoras, a Anfavea, ainda prevê uma queda de 5,4%. A avaliação comum entre as empresas é de que o mercado já chegou ao fundo do poço. Não piora mais, mas também pode levar algum tempo para se recompor, o que só deve ocorrer de fato em 2016. “O próximo ano será similar a 2014”, afirma o presidente da Nissan na América Latina, José Luis Valls. “Ainda esperamos volatilidade na América Latina, mas meu otimismo é que 2016 será mais forte.” A montadora inaugurou, em abril, uma fábrica com capacidade para produzir 200 mil carros por ano.
Em seis meses de operação já se viu obrigada a suspender temporariamente quase 300 funcionários devido à timidez do mercado. Para o presidente da Volkswagen do Brasil, Thomas Schmall, os ajustes na produção, com menor volume e suspensão dos funcionários, ainda não terminaram e devem perdurar em 2015. Sua percepção é compartilhada por executivos estrangeiros. “Vai ser difícil no próximo ano ou dois, mas este País passa por ciclos e esperamos que a situação volte ao normal”, afirma Ammann. Um dos principais sintomas de que o próximo ano será fraco é o nível atual dos estoques.
Pátios de montadoras e concessionárias acumulam cerca de 400 mil carros parados, o suficiente para 41 dias de negócios nos cálculos da Anfavea, nível próximo aos picos registrados na história do setor. Mesmo com a programação de férias coletivas de fim de ano na maior parte das montadoras, o índice ainda deve permanecer elevado. “Estoque acima de 35 dias é sempre desconfortável. Em 2015, todos vão entrar com estoque alto”, afirma Jaime Ardila, presidente da GM na América do Sul. O setor provavelmente usará esse argumento para negociar uma prorrogação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) reduzido com o governo federal.
A desoneração foi anunciada pela última vez em 2012 e acabaria em dezembro, quando as alíquotas para carros populares subiriam de 3% para 7%. Uma estimativa da Anfavea sugere que cada ponto percentual de alta no imposto eleva em 1,1% o preço final do veículo. Um carro de R$ 30 mil, por exemplo, passaria a custar R$ 31.320. Parece pouco, mas não é. Para os executivos do setor, o pior impacto do aumento é que a diferença acaba tirando mais consumidores da fila das compras, porque eleva a nota de corte na aprovação dos financiamentos. “Os nossos consumidores não estão aptos a receber crédito”, afirma Issao. “Se o governo mantiver o nível de IPI, o mercado vai piorar menos.”
Para fugir do quadro de aperto, as montadoras vêm privilegiando clientes um pouco menos sensíveis à oferta de crédito em seus lançamentos, com mais modelos SUV, como o Jeep Renegade, do grupo Fiat Chrysler, e o Honda HR-V, que serão fabricados no Brasil a partir do ano que vem. Esse segmento representa hoje 8% do total das vendas no País, ante 12% na América Latina. Ainda que o crédito seja um problema menor para esses produtos, as vendas dependem de uma melhora de confiança. A retomada da credibilidade vem sendo cobrada pela maior parte dos executivos do setor e coloca em dúvida até mesmo o desempenho das marcas de luxo, segmento que vem na contramão do mercado, com altas de até 40%.
A BMW prevê repetir em 2015 o volume deste ano, e a Mercedes-Benz prefere não apontar previsões. “O potencial existe. Tem de despertar o mercado. O governo precisa fazer um ajuste fiscal das contas públicas”, afirma Phillipp Schiemer, presidente da Mercedes-Benz para o Brasil. Cledorvino Belini, presidente da Fiat, acredita em uma melhora no nível de confiança no ano que vem porque não haverá as influências negativas deste ano, como a Copa do Mundo e as eleições. Ele lembra, contudo, que será um ano de ajustes na economia. “Em 2016, deve voltar à normalidade, com os ajustes e a correção de rota na economia, para a atividade voltar a crescer a 3%, 4% ao ano”, diz.
Diante das incertezas e do cenário de estabilidade nas vendas, o fantasma de ociosidade nas fábricas volta a assombrar o setor. Só a unidade da Jeep, que será inaugurada em Pernambuco em 2015, ampliará em 250 mil unidades a capacidade de produção das montadoras no País. Cálculos da consultoria PWC, referentes ao terceiro trimestre deste ano, estimam em cerca de 30% o nível de ociosidade nas companhias para 2015 e um excedente da ordem de 1,6 milhão de unidades. A projeção deve ser revisada para pior. “O cenário se deteriorou ainda mais. Dada a deterioração tão acentuada, as montadoras que possam postergar alguns investimentos certamente o farão”, afirma o consultor Marcelo Cioffi, da PWC.
A Ford trabalha com cenário ainda mais adverso. Estima que o nível de ociosidade na indústria pode subir dos atuais 45% para 50% na América do Sul. “Excesso de capacidade é nossa preocupação número 1. Temos um compromisso de ajustar a produção no dia a dia”, afirma Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford. “Ainda teremos estoques altos em 2015, e esses estoques custam muito caro.” Somada ao aumento do dólar, a desaceleração das vendas no Brasil tem pesado nos resultados globais das montadoras, tirando o País do destaque positivo para a ponta negativa do setor no mundo, posição em que deve ficar por mais um período.
Colaboraram: André Jankavski e Marcio Kroehn