No século XVII, a Inglaterra fez história ao depor pacificamente o rei Jaime II e coroar Guilherme de Orange. O mais marcante do episódio foi que encerrou a era absolutista no país – na qual o monarca evoca o direito divino de mandar e desmandar sobre o reino e seus súditos– e inaugurou a submissão do monarca às leis do Parlamento. Guardadas as devidas proporções, o Brasil assistiu a uma cena semelhante na noite de 26 para 27 de maio, quando a Câmara enquadrou seu presidente, Eduardo Cunha, que vinha exercendo a função com ares e atitudes imperiais, em uma espécie de absolutismo parlamentar, ávido por colocar de joelhos, sobretudo, o Poder Executivo.

Sua majestade perdeu o brilho, contudo, ao ser derrotado em temas importantes da reforma política: o distritão, que estabeleceria um novo sistema eleitoral, e a inclusão, na Constituição, do financiamento de empresas a políticos. Cunha, que defendia ambas, viu o distritão ser rejeitado e precisou de muita saliva para que as doações privadas fossem aprovadas, em uma segunda rodada de votações. Essa foi a sua primeira derrota significativa, após uma série de vitórias que incomodaram a presidente Dilma Rousseff. Agora, aliados e adversários reavaliam o verdadeiro poder do peemedebista carioca e se perguntam quem pode lucrar ou perder com seu enfraquecimento.

Pelo sim, pelo não, Cunha aprovou o fim da reeleição em primeira votação. A derrota de Cunha está longe de transformá-lo em um político sem influência. Mas, pela primeira vez, coloca limites à sua atuação. A força do peemedebista é diretamente proporcional à fraqueza da presidente Dilma Roussef e da chamada base aliada – e isso significa muita coisa. “O poder de Cunha é um reflexo da crise estrutural da política brasileira”, afirma o cientista político Aldo Fornazieri, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp).

O deputado só ousou engrossar tanto a voz e angariou tanto apoio, porque a presidente, às voltas com o mais difícil período político-econômico já enfrentado nos 12 anos de governo petista, mostra-se incapaz de conduzir uma forte articulação no Legislativo. Não bastasse o cerco implacável dos partidos de oposição, Dilma e sua equipe defrontam-se com um bloco governista cada vez mais indócil, incluindo não só o PMDB, do vice-presidente Michel Temer, mas também setores expressivos do Partido dos Trabalhadores, ao qual é filiada. Ao mesmo tempo, a oposição ainda busca uma forma de se contrapor a Dilma, sem conduzir o País ao desvario do “quanto pior, melhor”.

É justamente esse vácuo que inflou Cunha, que se autodenomina independente e prega que a Câmara tenha uma pauta própria, acabando com o papel de apêndice do Executivo. O equilíbrio de forças no interior de um poder da República é tão vital, quanto o balanceamento entre os vários poderes. Foi essa recalibragem que os deputados buscaram, ao baixar a crista de Cunha. Em política, parecer poderoso é tão importante quanto sê-lo, de fato. O problema é que Cunha acreditou na sua própria encenação, animou-se com a idéia de que era uma nova versão do Superman – e foi devidamente trazido ao planeta Terra por seus pares.

O deputado carioca perdeu as votações da reforma política porque se sentiu forte o bastante para atropelar a comissão especial criada para esse fim e ignorar o parecer de seu relator (e ex-aliado) Marcelo Castro (PMDB-PI). Essas arbitrariedades solaparam o apoio dos deputados, que lhe enviaram um recado explícito de que é apenas o presidente da Casa, não o seu imperador. “Se ele continuar com esse estilo autoritário, sofrerá cada vez mais derrotas”, afirma Fornazieri, da Fespsp. “Cunha realmente abusou da imprudência”, afirma o professor Roberto Romano, da Unicamp.

Se está claro que o parlamentar saiu no prejuízo, menos óbvio é quem lucra com sua debilidade. Por ora, dificilmente Dilma capitalizará o episódio. Isto porque a presidente acumula um histórico de falta de habilidade na negociação política – algo que se estende a parte de seu ministério. “Dilma também está fragilizada”, diz Romano, da Unicamp. O vice-presidente Michel Temer é apontado como um possível beneficiado, já que, ao assumir a articulação política do governo, passou a acumular poder suficiente para, pelo menos, equilibrar as forças dentro de seu próprio partido, o PMDB.

E, por falar na sigla, há quem cogite que o presidente do Senado, Renan Calheiros, aproveite a oportunidade para ressurgir como interlocutor entre o Congresso e o Palácio do Planalto. “Renan é mais astuto que Cunha e mais cauteloso para se posicionar”, afirma Fornazieri. Afastado de Dilma, desde que foi incluído nas investigações da Lava Jato, Calheiros tem conversado com os governadores, por exemplo, para evitar que o ajuste fiscal cause grandes estragos nos Estados. “Renan tem uma imensa capacidade de se reinventar”, afirma Romano, da Unicamp.