01/08/2014 - 20:00
O escritor português José Saramago disse certa vez que o grande problema da democracia é a permissão para fazer coisas nada democráticas democraticamente. Se o autor do livro Ensaio sobre a cegueira estivesse vivo, poderia usar sua frase como a perfeita definição do episódio que colocou o Santander e o governo brasileiro em lados opostos. Recentemente, os clientes do segmento Select do banco, que possuem renda média de R$ 10 mil, receberam uma carta do setor de análise de investimentos sobre a situação da economia brasileira.
No texto, o destaque é o desempenho do mercado financeiro, em que as ações de empresas estatais e bancos têm reagido com altas fortes diante das quedas de intenção de voto na presidenta da República nas pesquisas eleitorais, fenômeno registrado pela reportagem de capa da DINHEIRO em 9 de maio. “Difícil saber até quando vai durar esse cenário e qual será o desdobramento final de uma queda ainda maior de Dilma Rousseff nas pesquisas. Se a presidenta se estabilizar ou voltar a subir nas pesquisas, um cenário de reversão pode surgir.”
Não havia nenhuma novidade na constatação que diversos profissionais do mercado financeiro têm feito nos últimos tempos. Mas o caso ganhou ares de afronta quando o Santander foi cobrado publicamente pela presidenta. “Acho inadmissível um país que está entre as maiores economias aceitar qualquer interferência. A pessoa que escreveu a mensagem fez isso sim, e isso é lamentável, é inadmissível para qualquer candidato”, reagiu Dilma, que tem feito campanha contra o pessimismo dos agentes econômicos (leia reportagem “O futuro da indústria já começou”). Profissionais de mercado ouvidos pela DINHEIRO creditam o episódio a um descuido do Santander.
Embora não exista nenhuma cartilha que impeça um analista de escrever sobre A ou B, a regra implícita, seguida por todo o setor financeiro, é ser extremamente conservador com temas delicados. Nos Estados Unidos, ao contrário, é comum analistas de grandes bancos escreverem relatórios ácidos contra os candidatos. Na maior parte dos casos, nenhum texto precisava passar por um comitê de aprovação para ser enviado aos clientes. A partir de agora, no Santander, toda comunicação ao público deve ser aprovada pela chefia. E pelo menos dois bancos estudam publicar um “manual de etiqueta” para escapar de futuros constrangimentos.
A frase mais ouvida nesses dias é que o mercado vai andar no fio da navalha até o resultado das urnas. A reação da presidenta Dilma, do PT e até do ex-presidente Lula – que afirmou num evento da CUT que a “analista não entende p. nenhuma de Brasil” – é uma demonstração da tensão que está por trás dessa corrida eleitoral. Há alguns meses, o governo andava irritado com as análises realizadas por representantes do mercado financeiro, que não têm poupado críticas ao fraco desempenho da economia, nem escondido sua simpatia pelo candidato da oposição Aécio Neves, do PSDB.
Este tem na campanha o ex-presidente do BC Armínio Fraga. O que mais incomoda é a euforia na bolsa de valores com as quedas de Dilma nas pesquisas, sinal da especulação que normalmente grassa em épocas eleitorais. O Santander, um banco estrangeiro, foi a chance de personificação dessa prática financeira e, por isso, terá muito trabalho pela frente para administrar a crise de imagem que enfrenta.
O presidente do conselho de administração, Emilio Botín, que esteve no Brasil para participar de um encontro com reitores de universidades no Rio de Janeiro, afirmou que a “opinião da analista, que foi demitida, não era a mesma do banco”. Não é a primeira vez que o banco reage ao descontentamento do governo. Em 2011, o então economista-chefe Alexandre Schwartsman foi demitido após discutir com José Sérgio Gabrielli, que estava à frente da Petrobras, durante um seminário sobre o processo de capitalização da companhia.
O banco alegou que a dispensa fazia parte de uma reestruturação. Para acalmar os ânimos, o presidente do Santander no Brasil, Jesús Zabalza, enviou uma carta a Dilma. Mesmo assim, o vice-presidente Michel Temer cancelou sua participação no evento de Botín. A Prefeitura de Osasco, que tem arrecadação de quase R$ 2 bilhões em taxas e impostos, cancelou o contrato que tinha com o banco, numa retaliação imprópria a um prestador de serviço escolhido a dedo. A equipe do prefeito petista Jorge Lapas, porém, afirma que o fim do convênio não está ligado ao episódio.