Uma notícia inusitada  tumultuou os mercados logo no início da última semana. Pela primeira vez na história da República brasileira, o Executivo enviou ao Congresso um Orçamento com previsão de déficit primário. O presente de grego foi entregue pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, ao presidente do Senado, Renan Calheiros, num encontro que contou com a participacão de um contrariado ministro da Fazenda. Joaquim Levy, que assumiu o posto com a missão de cortar gastos e colocar as contas públicas em dia, sofreu mais uma derrota dentro do governo. A resposta dos investidores foi intensa, com o realinhamento de preços sugerindo que, na prática, o País já perdeu o grau de investimento. O dólar passou rapidamente de um patamar de R$ 3,50 para testar um novo limite, superior à barreira de R$ 3,80, e os juros futuros dispararam em meio ao ambiente de incertezas. As especulações sobre o enfraquecimento do ministro Levy chegaram a tal ponto que colocaram em dúvida sua permanência no cargo. Na quarta-feira 2, a presidente Dilma Rousseff veio a público reafirmar seu apoio ao titular da Fazenda. “O ministro Levy não está desgastado no governo”, afirmou. No dia seguinte, Dilma convocou uma reunião com os principais ministros para tratar do tema, obrigando Levy a adiar o embarque para a Turquia, onde participa da reunião dos países do G-20. “É evidente que Levy fica”, afirmou o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante. Até quando?

O que está em jogo é o incontornável problema fiscal e as prováveis consequências da perda do grau de investimento, o selo de bom pagador dado pelas agências de classificação de risco de crédito, em 2008. Essa nota é a garantia para que mais investidores apostem no Brasil, já que reúne uma avaliação profunda sobre os fundamentos da economia. Sua perda pode afugentar bilhões de dólares investidos no país por fundos estrangeiros. Pela complexidade dos desafios, há economistas que alertam para algumas semelhanças entre o País e a Grécia, que se tornou o grande emblema europeu da crise dos últimos anos. As medidas impostas como tentativa de reparo até hoje custam caro aos gregos. Indicadores como o desemprego e a renda revelam um país que regrediu uma década. Nos últimos meses, diante do persistente quadro recessivo e das sucessivas derrotas do ministro Levy no Congresso, tornou-se comum ouvir especialistas mencionarem o temor de que as recentes conquistas sejam revertidas, assim como no caso grego. “Para o mercado, o déficit primário é um dado muito ruim”, afirma Patrice Etlin, do fundo de investimento Advent. “O modelo de receitas do País faliu e alguém precisa avisar a presidente.”

O patamar do risco-país alcançado na última semana é bem superior ao de países com classificação semelhante ao do Brasil e chega a ultrapassar até economias que já perderam o grau de investimento, como a Turquia (veja gráfico). “Podemos dizer que o rebaixamento já está precificado? Provavelmente sim”, afirma Hélio Magalhães, presidente do Citibank. “A grande pergunta é: o que vai acontecer com o Brasil?” Outro sinal que indica a reclassificação é a inversão da tendência dos juros de longo prazo. A leitura da curva de juros futuros, que antes mostrava um cenário de queda, agora sugere elevações das taxas mais adiante, um sinal de que os investidores enxergam mais riscos. Segundo Maurício Oreng, economista do Itaú, os impactos da perda do grau de investimento não acontecem apenas no dia do anúncio, são graduais, e já estão sendo antecipados. “A função do mercado é antecipar essa tendência”, diz Oreng. Para ele, mais importante que a nota, em si, é a avaliação dos fundamentos que ela revela. “Com o anúncio do déficit, a tendência é de que a dívida bruta aumente de forma mais rápida.” Pela previsão do Orçamento, o rombo do ano que vem deve ser de cerca de R$ 30 bilhões, número subestimado, na avaliação do mercado, que projeta ao menos R$ 36 bilhões. Com esse dado, o Itaú estima que a dívida bruta do País alcance 72% do PIB, já no ano que vem.

A revelação de que o Brasil pode fechar o terceiro ano consecutivo com as contas no vermelho acentuou a confusão dos empresários sobre o que esperar dos próximos meses. A percepção predominante é de que o País está à deriva, sem direção, o que dificulta o planejamento. Para quem produz e vende, a incerteza mais latente é para que nível irão os impostos, no afã de cobrir o rombo das contas públicas. “Estamos num momento de inflexão e é importante um bom diálogo entre o governo e o empresariado”, afirma José Ferrara, presidente da seguradora Tokio Marine. “O governo tem de trabalhar com a ideia de superávit, para não correr o risco de perda de grau de investimento.” A polêmica em torno do déficit suscitou declarações até de empresários mais avessos a aparições públicas.

Em evento do setor privado, em São Paulo, na semana passada, Abilio Diniz minimizou as dificuldades recentes, ao lembrar que déficits públicos são corriqueiros na Europa. “Acho que o mercado já precificou a perda do grau de investimento.” Motivado pelo bom desempenho das empresas nas quais participa da gestão (Carrefour e BRF), Abilio tem se colocado como uma voz de apoio ao governo. Mesmo assim, fez questão de enfatizar o nó político que está travando o País. “O Brasil supera os problemas econômicos se superar a crise política.”

Conselho de amigo 

As recorrentes trapalhadas do governo – como a proposta de recriar a CPMF – jogam em sentido contrário, com uma impressão de falta de consenso e unidade no Executivo e entre os próprios responsáveis pela  equipe econômica. “Temos de discutir novas fontes de receita. Não queremos ficar com o déficit”, afirmou Dilma na sexta-feira 4, indicando um recuo da proposta de Orçamento com rombo, que foi muito mal recebida pelos parlamentares e pelos investidores. Aparentemente, ela ouviu o conselho do presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, que foi a Brasília na quarta-feira 2 alertá-la dos riscos dessa estratégia e de uma eventual saída do ministro Levy.

Todo o debate em torno do Orçamento reforça a necessidade de o País revisitar estruturas antigas e se debruçar sobre reformas estruturais. Há quem tenha enxergado na decisão de optar pelo déficit uma forma encontrada pela equipe econômica para levar o tema para a opinião pública e colocar o Congresso como corresponsável. “Talvez o Orçamento com o buraco seja a forma de mostrar para a sociedade que não será fácil cobrir o rombo só com o corte de despesas”, afirma o economista Mansueto Almeida, especialista em finanças públicas. Ainda que a mensagem oficial tenha sido a de mostrar um cenário realista e transparente, a impressão predominante foi a de que o governo jogou a toalha na luta para restaurar a ordem nas finanças públicas. O debate sobre reformas estruturais resgatou o dilema de administrar as despesas obrigatórias previstas pela Constituição, como saúde e educação. Segundo o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, 90,5% das despesas primárias previstas para o próximo ano se enquadram nessa categoria. “Isso mostra a rigidez do Orçamento, mas essa rigidez não foi produzida de ontem para hoje e não será resolvida de hoje para amanhã”, diz o ministro. Até mesmo políticos experientes como Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, esbarraram no problema ao dizer que as despesas não cabem mais no PIB. Para a maior parte dos economistas e de empresários, a crise econômica lançou as condições para a revisão de práticas consolidadas, como os vícios da Previdência. “Não podemos mais aposentar pessoas com 50 anos”, afirma Abilio. “É preciso reorganizar esse País e, para isso, deve haver estabilidade política.”

Aí é que mora o problema. Faltam ao governo credibilidade e força entre os atores que podem ditar as mudanças. Se, no Congresso, o Executivo não tem conseguido barrar nem mesmo aumento de servidores públicos, é mais do que provável que não encontrará espaço para aprovar projetos reformistas, a maior parte deles impopulares e contrários aos interesses de grupos específicos. A fragilidade do Planalto é o que tem contribuído para toda sorte de ataques e boatos, entre os quais o de que Levy deixaria o governo. “Ruim com ele, pior sem ele”, afirma em suas defesa o consultor José Roberto Mendonça de Barros,ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. No front político, a desaprovação recorde do governo vem fortalecendo o PMDB, que deixa escapar com uma clareza cada vez mais letal o desejo de romper com o Planalto. “Espero que o governo vá até 2018”, afirmou o vice-presidente Michel Temer, em evento com empresários contrários ao governo, em São Paulo, na quinta-feira 3.“Ninguém vai resistir por três anos e meio com esses índices tão baixos (de aprovação).” Temer, que defendia uma coalizão para garantir a governabilidade, já havia criticado o Planalto pela falta de visão política no esforço frustrado de relançar a CPMF. Sua fala foi vista como mais um presente de grego para Dilma.