27/10/2010 - 21:00
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está definitivamente incorporado à campanha eleitoral nesta reta final de segundo turno. Sua imagem, suas realizações e a marca de governo que deixou voltaram à ordem do dia por um motivo nada prosaico: as privatizações. Trazido à tona pela oposição e a contragosto de Serra, que resistia em ligar a sua propaganda eleitoral àquele que é o mais consagrado quadro partidário dos tucanos, FHC entrou na ribalta cobrando compromisso dos correligionários.
Há alguns dias, em Cartagena, na Colômbia, onde esteve como “guest speaker” para 150 empresários convidados do Grupo Lide, na reunião anual do Meeting, organizada por João Doria Jr., o ex-presidente não mediu palavras na crítica que disparou contra aqueles que tiveram vergonha do seu legado: “Faltou coragem e sinceridade à oposição para explicar de forma convincente que fizemos certo em privatizar”, registrou FHC.
Para ele, a sociedade saberia entender se a oposição tivesse mostrado os benefícios das privatizações. “Por exemplo, se não fosse a privatização o País não teria internet hoje. Isso tinha de ter ficado claro para a população, mesmo porque o governo Lula não voltou atrás em nenhuma das privatizações que fizemos.”
O recado em Cartagena foi um ponto de inflexão importante na postura condescendente que vinha mantendo até aqui com o exílio forçado imposto à memória de sua gestão pelos aliados do PSDB. A questão fundamental na tática de escondeesconde de FHC pelo partido é saber os motivos que levaram a esse caminho.
A alegação mais em voga é a de que a opção dos estrategistas se deu com base em um levantamento apontando que o modelo privatista de Fernando Henrique tirava voto da sigla. Um argumento discutível. É fato que tanto na campanha de 2002 como na de 2006 – e, em parte, na de agora – a tese prevaleceu e o quase banimento do nome do ex-presidente lhe deixou mágoas. “Nas eleições prevalece o marquetismo”, queixou-se FHC aos empresários que o ouviram em Cartagena.
Aparição discreta, na terça-feira 19: faltando 13 dias para a eleição, Serra convidou FHC pela primeira
vez para um evento de campanha. Mas preferiu saudar de forma efusiva Fernando Gabeira
Aos olhos de muitos espectadores da fala do ex-presidente, Serra parece ter encampado erroneamente a orientação de seus assessores e nas duas ocasiões em que concorreu escolheu de maneira deliberada deixar FHC à margem do processo. É notório no balanço desta última campanha. No primeiro turno, FHC não gravou sequer um único depoimento para o programa do tucano na tevê. Teve praticamente nenhuma participação nos palanques.
Apenas na semana passada fez a sua primeira aparição pública ao lado de Serra, ainda que discreta – os dois separados por Fernando Gabeira, que foi saudado efusivamente pela escolha pró-PSDB. Há quem enxergue na inclinação de Serra certo ressentimento por ter visto o antigo amigo chegar antes ao posto que cobiçou por toda a vida – “desde criancinha”, como disse em entrevista à ISTOÉ, em 23 de junho último.
No primeiro programa eleitoral do segundo turno, semanas atrás, Serra mostrou-se hesitante quanto ao projeto de remodelagem do Estado levado a cabo por FHC. No lugar de defender claramente as privatizações, saiu tangenciando o assunto e imputou ao partido adversário problemas de condução relacionados ao mesmo tema. “Quero deixar claro que sou contra as privatizações do PT” , afirmou. Citou o caso da venda do Banco Estadual de Santa Catarina e do Banco do Estado do Maranhão.
FHC, em cartagena: diante de 150 grandes empresários, ele falou sobre a sucessão,
mas não citou o nome do candidato tucano
Mais uma vez, no debate da Band há 15 dias, desviou-se de um apoio explícito às ações do governo FHC. Indagado sobre o porquê de falar pouco da antiga gestão presidencial tucana, foi lacônico: “Tenho ideias próprias.” No ambiente do Meeting de Cartagena, FHC deu um elegante troco. Em quase duas horas de exposição, se esforçou para não citar o nome de Serra.
Mesmo quando indagado a respeito das eleições, mergulhou em contorcionismos verbais para parecer generalista e não apontar o candidato de seu partido – como no caso da resposta sobre o desafio do crescimento sustentável: “Os dois candidatos que sobraram, que estão louquinhos pelos votos da Marina, terão de se comprometer com a questão ambiental.”
Na segunda-feira 18, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma entrevista contundente com o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, na qual ele faz grave acusação no capítulo de venda de estatais. Afirmou Gabrielli que o governo FHC teria preparado a privatização da Petrobras, algo que soa pecaminoso no imaginário de boa parte da sociedade brasileira. “Se a política (de Serra) for a mesma (de FHC), vai levar ao desmembramento da Petrobras e ao enfraquecimento da capacidade de fazer o grande investimento que ela tem”, disse Gabrielli.
Mais adiante alegou que a engenharia da Petrobras foi desmontada (no governo FHC) e que o modelo de gestão reduzia a exploração do petróleo, inibia investimentos e deixava o lucro para o setor privado. “A continuidade daquela política levaria à privatização.” O PSDB e Serra silenciaram. Coube a FHC responder sozinho mais uma vez, como voz independente a se contrapor às acusações para defender sua administração.
Nos tempos do CEBRAP: FHC e Serra sempre tiveram relação de interdependência
“É lamentável que ele (Gabrielli) se meta na política dessa maneira, com injúrias, com infâmia, com mentiras.” Nesses tempos em que a exacerbação de ânimos políticos atinge o seu auge é muito bom ouvir as ideias de FHC, com seu estilo professoral, visão clara da reengenharia de mercados globais e a serenidade com que avalia os acontecimentos em torno da eleição.
Ele pondera que hoje, seja qual for o escolhido a comandar o País, o grande desafio não é mais crescer. Nesse trilho o Brasil já está. “A regra é competir”, pontua, alertando que, para um país se equilibrar no sistema capitalista, o importante é ter empresas competitivas – sejam elas públicas ou privadas.
Fernando Henrique parece ter o dom da ponderação, o traquejo na medida exata para tratar assuntos espinhosos com a naturalidade de um líder e buscar sempre o equilíbrio. No campo pessoal não torna explícita, mesmo que houvesse, qualquer diferença de opinião com a opção de Serra de deixá-lo fora dos holofotes. “Eu participo da campanha dentro dos limites que acho possível para um expresidente”, contemporiza.
Em rodas fechadas de amigos confessa apenas o temor de que Serra coloque tudo a perder jogando para fora seus demônios. E, na visão de FHC, Serra tem alguns demônios que nem ele controla. Juntos na trajetória política desde que voltaram do exílio nos idos dos anos 70, FHC e Serra possuem uma história de interdependência intelectual que remonta aos primórdios da fundação do PSDB.
Antes foi FHC que, ao participar do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap, convidou Serra para virar professor e pesquisador. Depois levou o antigo companheiro de cátedra para o seu governo. Com uma marca de realizador, FHC teria muito a contribuir neste momento no jogo eleitoral de Serra.
A dúvida é se essa estreia na bancada do tucano não se deu tarde demais. Na opinião da professora de filosofia Marilena Chauí, a conduta de Serra mesmo em ações positivas como o tema da privatização está longe de parecer com a de FHC. “Serra não tem um projeto para o Brasil. Ele é uma versão empobrecida de FHC.” No que diz respeito às privatizações, defendê-las deveria ser a tarefa mais fácil que existe.
Muitas delas trouxeram notórios benefícios para o Brasil e para a própria saúde da corporação, com resultados vistosos (leia quadro). A Vale do Rio Doce, para ficar no caso mais notório, experimentou uma valorização sem precedentes ao ser privatizada em 2007. De lá para cá, seu valor de mercado saltou de R$ 8 bilhões para R$ 273 bilhões. Uma prova de que o modelo levado adiante por FHC estava certo.