26/04/2013 - 21:00
No livro Recuerdo de la Muerte, o jornalista e político argentino Miguel Bonasso narra a história de um guerrilheiro montonero, sequestrado no Uruguai e levado clandestinamente à Esma, Escola de Mecânica Armada, um centro de tortura na ditadura militar em Buenos Aires. Esse drama político ocupou boa parte das conversas entre a presidenta Dilma Rousseff e a colega argentina Cristina Kirchner, que se encontraram na Casa Rosada na quinta-feira 25. Numa reunião marcada pela falta de decisões, as duas mulheres mais poderosas da América Latina concordaram que o livro de Bonasso daria um belo filme, segundo elas mesmas contaram aos jornalistas, no Salón Bicentenario do palácio presidencial.
Sem pé nem cabeça: a política externa suave de Dilma
favorece Cristina e abre espaço para a China,
em detrimento do Brasil
O ambiente cordial não resultou em nenhuma medida para aliviar as tensas relações comerciais entre os dois países. “Fizemos um grande esforço esta tarde e esse esforço vai se coroar com os encontros que se efetivarão na reunião do Mercosul, em Montevidéu”, afirmou Dilma. Os técnicos dos dois países continuarão a discutir os assuntos pendentes na terça-feira 30. Em suma: não decidiram nada. O desfecho da longa tarde de reuniões entre as duas presidentas é bastante revelador. Os argentinos sempre deram trabalho para o governo brasileiro. Nos bastidores, ministros e técnicos reclamam do estilo da equipe de Cristina, de sempre tentar obter vantagens na relação comercial com o Brasil.
Diante dos microfones, e nas negociações com os próprios argentinos, no entanto, a postura é bem diferente. Os diplomatas brasileiros exercitam uma tolerância que parece infinita com os vizinhos, apesar das medidas protecionistas que sempre prejudicam as exportações para lá. Mas será que eles merecem toda essa generosidade? Na avaliação do diretor titular do Departamento de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Roberto Giannetti da Fonseca, a resposta é não. “O Brasil está sendo muito paciente com o governo argentino e, do ponto de vista dos empresários, não sei até que ponto mais essa paciência vai agüentar”, diz, com razão.
O governo brasileiro alega que é preciso ter calma, porque vizinho não se escolhe e, afinal, a Argentina é o terceiro maior destino de exportações brasileiras, especialmente de manufaturados. O problema é que, junto com a paciência dos empresários, o comércio bilateral vem se deteriorando. As exportações para a Argentina caíram 10,4% no primeiro trimestre deste ano, enquanto as importações cresceram 16%, levando ao primeiro déficit com o país desde 2003. No ano passado, os embarques já haviam diminuído 20,7%. A reversão da tendência de polpudos superávits em favor do Brasil não é mero acaso, mas fruto de uma ação deliberada dos argentinos, que estão comprando mais da China e dos Estados Unidos.
Adiós, potássio e livre comércio: a Vale deixou claro que está saindo de vez do projeto Rio Colorado,
em Mendoza (foto à esq.). Enquanto isso, a Argentina tenta adiar o acordo automotivo
Para colaborar com a necessidade de dólares da Argentina, a Fiesp elaborou um estudo que identifica US$ 12 bilhões em produtos que poderiam ser importados do país vizinho a preços competitivos. “Estamos fazendo um esforço, mas, em troca, tivemos a substituição dos produtos brasileiros por chineses”, desabafa Giannetti. Destino de muitos investimentos brasileiros nas duas últimas décadas, a Argentina está se tornando um país perigoso para o capital estrangeiro. A Vale já deixou claro que não pretende retomar o projeto para exploração de potássio na província de Mendonza. “Esperamos que, com essas discussões, que estão em curso esta semana, a Vale deixe a Argentina da forma mais serena e pacífica possível e que o Projeto Rio Colorado seja implantado, mas por outros sócios”, disse na quinta-feira, 25, o presidente da mineradora, Murilo Ferreira.
A Petrobras também pode vender sua parte na refinaria Tesa. Outras empresas devem seguir o mesmo caminho. “Hoje, o grande problema da Argentina é insegurança jurídica”, diz o consultor Welber Barral. O ponto mais espinhoso da relação entre os dois países é justamente o que permitiu a integração de cadeias produtivas e atraiu empresas estrangeiras para os dois lados da fronteira. O regime automotivo, que entrou em vigor em 2009 e prevê vantagens para os produtos made in Argentina, deve acabar em junho deste ano, dando origem ao livre comércio no setor. Os argentinos resistem.
Ainda no Brasil, um dia antes de embarcar com a comitiva presidencial a Buenos Aires, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, disse que o Brasil concordaria em prorrogar o acordo atual. “Não vejo problema em postergar nas mesmas bases que o acordo funciona hoje”, afirmou. Pimentel lembrou que a Argentina é superavitária em relação ao Brasil nos veículos prontos, mas tem déficit nas autopeças. “É como se estivéssemos comprando carros argentinos, só que feitos com peças brasileiras”, disse o ministro. O problema, como mostra a falta de acordo entre as presidentas, é que a Argentina quer mais. Resta saber se desta vez o Brasil saberá dizer não.