Inaugurado em 1914 após dez anos de construção, o Canal do Panamá é uma das sete maravilhas do mundo. Porém, no começo do século passado, “Panamá” era sinônimo de escândalo financeiro. Para construir a passagem em 1880, empreendedores franceses captaram uma fortuna de investidores. Os esforços foram frustrados pelas condições do terreno e pela morte de milhares de trabalhadores, mas isso foi escondido, com o beneplácito das autoridades. Subornadas, elas preferiram olhar para o outro lado.

Agora, o Panamá volta a ser associado a escândalos. No dia 3 de abril, um domingo, uma reportagem investigativa, que mobilizou 376 jornalistas de 76 países durante um ano, começou a desnudar o caso dos “Panamá Papers”. Uma fonte anônima divulgou 11,5 milhões de documentos do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca, em um vazamento de dados maior do que o do private bank do HSBC na Suíça. A análise dos documentos mostrou que o Panamá tornou-se o paraíso de quem quer esconder dinheiro, limpo ou nem tanto, das autoridades em seus países de origem.

“A legislação panamenha é opaca”, diz o advogado paulista Marcelo Godke, sócio do escritório Godke, Silva e Rocha. “As empresas ainda têm ações ao portador, e o empresário não é obrigado a divulgar quase nenhuma informação para as autoridades locais.”Na contramão do movimento recente, capitaneado pelos Estados Unidos, de obrigar mais e mais países a adotar regras globais de transparência, o Panamá atraiu bilhões em dinheiro com origem pouco conhecida, graças, em parte, aos serviços prestados pelo Mossack Fonseca.

O escritório foi criado há 40 anos por dois advogados, o alemão Jürgen Mossack, filho de um militar nazista que prestou serviços de espionagem para os americanos, e o panamenho Ramón Fonseca, de uma família tradicional local. Seus clientes incluem políticos de todas as latitudes e ideologias, do presidente russo Vladimir Putin ao primeiro-ministro britânico David Cameron, que herdou uma off-shore criada por Ian Cameron, seu pai, falecido em 2010. Também há celebridades do esporte, como o craque de futebol argentino Lionel Messi e cartolas da Fifa e da Uefa.

A divulgação da lista já fez uma vítima no cenário político: na terça-feira 5, cerca de 48 horas após a divulgação dos documentos, Sigmundur David Gunnlaugsson, primeiro-ministro da Islândia, renunciou ao cargo. A notícia de que ele e a esposa possuíam uma off-shore panamenha com títulos de bancos islandeses falidos custou-lhe o cargo. Os papéis poderiam ser usados em um programa governamental de recuperação, proposto e aprovado – por uma coincidência, é claro – pelo próprio Gunnlaugsson. Escaldados pela falência de seus três maiores bancos em 2008, os islandeses foram às ruas protestar.

“Você não tem vergonha”, mostravam as placas, em islandês e em inglês para garantir que o recado não seria perdido na tradução. Na Inglaterra, Cameron seguiu o roteiro tradicional dos políticos. Na segunda-feira 4 ele ignorou o fato, na terça-feira 5 ele declarou não ser responsável pela empresa e na quinta-feira 7 ele pediu desculpas, prometendo “reparar qualquer engano”. Na manhã da sexta-feira 8, os eleitores ingleses ainda não tinham certeza se iriam perdoar Cameron. Uma pesquisa mostrou que 58% dos entrevistados achavam seu governo ruim, e 68% disseram não confiar nele em suas relações com o fisco de Sua Majestade.

O caso de Putin é mais pitoresco. Ele não tem dinheiro em seu nome, mas pessoas próximas, como um amigo de infância que trabalha como violoncelista clássico, possuem um patrimônio total de US$ 15 bilhões espalhado em pelo menos 20 off-shores. “Isso é uma tentativa de desestabilizar o governo russo”, foi o comentário oficial do Kremlin. Na China, origem de um terço dos clientes do Mossack Fonseca, membros de nove das famílias mais importantes, inclusive do presidente Xi Jinping, possuem empresas, a maioria no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas.

Constrangido, o governo de Pequim não vem enfrentando protestos, por uma razão bastante simples. Menções aos “Panamá Papers” são sumariamente censuradas na internet e na televisa locais. Uma lista tão fornida teria de incluir brasileiros. Dentre eles há nomes ilustres, como os dos deputados federais Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e Newton Cardoso Júnior (PMDB-MG), filho do ex-governador Newton Cardoso. Segundo uma reportagem publicada em O Estado de S. Paulo, que integra o consórcio de jornalistas que vasculhou os papéis, os Cardosos, pai e filho, são suspeitos de usar a off-shore Cyndar Management, aberta em 2007, para comprar um helicóptero e um apartamento em Londres.

Procurado, o escritório do deputado em Brasília não retornou as ligações. Ao Estado de S. Paulo, a família Cardoso negou qualquer irregularidade. Já Cunha teria contas abertas por meio da off-shore Penbur Holdings. Essa companhia consta da delação premiada do empresário Ricardo Pernambuco, mas a assinatura de Cunha não consta dos papéis. Em nota, o presidente da Câmara desmentiu as informações. Possuir uma empresa em um paraíso fiscal para reduzir o pagamento de impostos é legal. O que incomoda as autoridades é um subproduto dos paraísos fiscais, o sigilo. 

Ao lado de dinheiro legalmente ganho podem estar recursos provenientes de tráfico de drogas, sequestros, corrupção ou terrorismo. Por isso, desde o atentado de 11 de setembro de 2001, o governo americano apertou o cerco contra os centros financeiros opacos. Muitos paraísos fiscais já se adequaram às novas regras, mas não o Panamá, que permanece alheio à transparência. Graças aos “Panamá Papers”, quem se escondeu no paraíso fiscal acordou no inferno.