11/11/2016 - 17:00
A caminhada vitoriosa de Donald Trump para a Casa Branca começou em um dia frio de março. Na campanha das primárias do estado de Michigan, tradicionalmente um dos pilares mais sólidos da “muralha” democrata, Trump atacou uma decisão da Ford de investir US$ 2,5 bilhões em uma nova fábrica de motores no México. “Essa política é um desastre para a indústria automobilística e para o nosso país”, disse ele, com a tradicional retórica inflamada. Trump prometeu lançar um imposto de 35% sobre os carros produzidos no país vizinho, ignorando solenemente os inúmeros tratados de livre comércio assinados entre México e Estados Unidos ao longo dos últimos anos.
“Garanto que, depois que eu fizer isso, em 48 horas vou receber um telefonema do presidente da Ford, dizendo ‘senhor presidente, decidimos que vamos construir nossa nova fábrica nos Estados Unidos’”. O resto é história. Michigan e outros bastiões democratas do antigo cinturão industrial, como Ohio, Wisconsin e a Pensilvânia, votaram maciçamente em Trump. O que ocorreu em Michigan explica como um empresário polêmico, sem nenhuma experiência política nem discurso consistente, conseguiu ser eleito para o cargo mais poderoso do mundo.
Trump ganhou a eleição porque foi certeiro em sua mira. Ele falou diretamente aos corações – não às mentes – e aos bolsos de um grupo crescente de americanos: os que estão descontentes por se sentirem excluídos do processo de globalização. Em termos absolutos, a abertura comercial que vem sendo costurada desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e que se acelerou nos últimos vinte anos, foi um sucesso. Sem considerar a inflação, os salários médios dos trabalhadores americanos subiram de US$ 23,7 mil para US$ 48,1 mil por ano, um aumento pouco superior a 100%.
No entanto, nesse mesmo período, o comércio internacional quase quadruplicou, subindo de US$ 4,3 trilhões para US$ 16,6 trilhões, um aumento de 286%. Ou seja, mesmo que o trabalhador americano esteja ganhando mais, ele não participou plenamente do crescimento do comércio global que, em última análise, lançou as bases do enriquecimento da Ásia e, em menor escala, dos demais países emergentes. Trump venceu porque foi hábil ao explorar um paradoxo. A globalização é extremamente eficaz em aumentar a riqueza global e os lucros das grandes corporações, mas muito menos eficiente ao distribuir seus frutos de maneira homogênea.
Basta olhar como a renda americana se concentrou. Segundo dados do Congresso americano, em 1995, a fatia das famílias 10% mais ricas detinham um patrimônio de US$ 20 trilhões, cifra que cresceu para US$ 51 trilhões em 2013, um avanço de 155%, bem acima da alta dos salários. “O trabalhador americano está mais rico em termos absolutos, mas a concentração de renda faz com que ele esteja mais pobre em termos relativos, e ele percebe isso muito claramente”, escrevia Paul Krugman, prêmio Nobel de economia, já no fim da década passada, ao comentar o efeito da crise financeira. E desde então, o pacote de ajuda governamental aos bancos, que elevou o desemprego e enriqueceu ainda mais os banqueiros, só acentuou essa percepção. A mudança no custo internacional do trabalho é outro ponto de tensão. De novo, aos números.
O Bureau of Labor Statistics, instituição estatal americana, compila sistematicamente não apenas os custos da mão de obra nos Estados Unidos, mas também os custos de países concorrentes. Em termos relativos, o salário médio por hora de um trabalhador americano cresceu 55% entre 1995 e 2012, dado mais recente disponível. No mesmo período, um operário mexicano viu seu salário por hora dobrar. No entanto, a hora trabalhada de um americano subiu de US$ 22,50 para US$ 35. A do mexicano avançou de US$ 3 para US$ 6. Não há dados confiáveis sobre a China, mas, no único momento em que a comparação foi possível, em 2002, o salário médio chinês representava menos de 30% do salário médio mexicano.
Assim, é possível dizer sem errar que o enriquecimento chinês com a globalização é inegável. O trabalhador chinês está muito mais próspero em 2016, na média, do que há vinte anos, e o número de bilionários cresceu exponencialmente. Mesmo assim, o americano em geral ainda está muito melhor do que seus concorrentes. O fato de isso não ser visível definiu a vitória de Trump. Mesmo assim, o discurso do eleito tem riscos. Trump sabe que sua retórica é limitada. Não adianta ameaçar a Apple para forçá-la a transferir sua produção de iPhones da China para os Estados Unidos.
Hoje, a dinâmica do comércio global vai muito além das fronteiras nacionais. Mesmo montados na China, os produtos da Apple não são chineses, assim como os aviões que saem dos galpões da Embraer em São José dos Campos estão longe de ser totalmente brasileiros. As turbinas vêm dos Estados Unidos, as asas são produzidas parcialmente no Japão e muitos dos componentes vêm da Europa. Um candidato ao Palácio do Planalto que, em 2018, propusesse nacionalizar a produção para “defender” a Embraer acabaria tornando inviáveis suas operações. A aposta, agora, é que a retórica inflamada da campanha de Trump dê lugar à frieza necessária das negociações comerciais globais.
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