24/07/2015 - 19:00
As previsões excessivamente otimistas do ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, em seus últimos anos no cargo, lhe renderam fama internacional, com direito a ironias em reportagens de publicações globais e bate-boca com analistas. Em um dos episódios, em junho de 2012, Mantega classificou de “piada” o relatório de um banco estrangeiro que apontava um crescimento de 1,5% , ante a projeção oficial de 4%. Ao final daquele ano, constatou-se que o cenário do banco era, na verdade, benevolente: o ano terminou com uma expansão de 0,9% – dado recém-ajustado para 1,8% após a revisão metodológica do IBGE.
A utilização de números exagerados e de inovações contábeis criadas para atenuar resultados negativos tornou-se frequente no último governo, representando uma frente adicional de incertezas aos investidores. Não à toa, um dos primeiros compromissos firmados pela nova equipe econômica, capitaneada pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, foi o de restabelecer a transparência das contas públicas. Na primeira entrevista, em novembro de 2014, antes mesmo de assumir o cargo, Levy e sua equipe reforçavam a importância de que as metas deveriam ser cumpridas, sem “jeitinhos”.
Seis meses após iniciar a condução do ajuste, porém, a equipe se viu confrontada com o dilema de decidir qual das duas máximas acima iria descumprir. Preferiu a primeira. Em nome da transparência, admitiu um quadro de deterioração mais profundo na economia e revisou a meta de superávit (a poupança para o pagamento de juros da dívida) de 1,1% para 0,15% do PIB, ou R$ 8,7 bilhões. Embora esperada, a mudança, anunciada na quarta feira 22, surpreendeu os analistas. “A ideia era de que seria revisada mais para frente”, afirma Luka Barbosa, do Itaú Unibanco.
“Independentemente do timing, a magnitude da redução surpreendeu. Nossa projeção era de um superávit de 0,5% do PIB.” Sair de um déficit de 0,4% do PIB, no ano passado, para um resultado positivo de 1,1% era uma tarefa encarada como desafiadora quando a expectativa era de que o País cresceria 0,8%, em 2015, como previsto em dezembro. Tornou-se impossível quando o cenário passou a ser o de recessão – as previsões apontam agora uma retração de 1,7%. A queda da atividade derrubou a arrecadação no primeiro semestre.
Levy também foi surpreendido por um clima mais hostil no Congresso, que dificultou a aprovação das medidas previstas para atenuar os gastos, como o aperto na regra do seguro-desemprego. Com a popularidade ao nível mais baixo desde os tempos do ex-presidente Fernando Collor de Mello, a presidente Dilma Rousseff não consegue votos nem da base aliada. No relatório de avaliação do Orçamento, apresentado na mesma quarta-feira, a piora do déficit na Previdência aparece como um dos principais vilões das contas. A expectativa é de um rombo de R$ 16 bilhões maior do que o estimado há dois meses.
Na outra ponta, a equipe econômica se esforça em buscar alternativas para fechar as contas. Além de um novo contingenciamento, de R$ 8,6 bilhões, a intenção é levantar até R$ 51,6 bilhões em receitas extraordinárias, com medidas como a repatriação de recursos mantidos irregularmente no exterior e outorgas de concessões. Há dúvidas quanto à real capacidade de que essas medidas se concretizem. O governo deixou aberta a possibilidade de abater até R$ 26,4 bilhões do esforço adicional. Isso significa, na prática, que mesmo com um déficit de R$ 17,7 bilhões, a meta primária ainda será cumprida.
Dias antes da revisão, Levy indicara seu desconforto com a mudança, ao declarar, em entrevista, que a decisão poderia até aprofundar o arrocho. Foi voto vencido na disputa com os defensores da redução, liderados pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, mais sensíveis às pressões do PT, preocupado com os eventuais prejuízos nas eleições municipais de 2016. A despeito da posição contrária, Levy passou a repetir à exaustão que as alterações não refletem um relaxamento na condução das contas. “Não é indicação de abandono do ajuste fiscal.”
A presidente Dilma Rousseff também se posicionou: “Hoje perseguimos o reequilíbrio das contas públicas, que é parte essencial para que a economia se recupere”, disse. O discurso não convenceu o mercado. Na sexta-feira, o dólar bateu no maior patamar em 12 anos, cotado a R$ 3,34, e a Bolsa aprofundou a queda, voltando a ficar no vermelho no acumulado do ano. A leitura é de que aumentou o risco de um rebaixamento por parte das agências de classificação, já que a trajetória de queda da dívida do governo se distanciou. O Brasil fica mais perto de perder o selo de bom pagador, cenário que afastaria investidores, aumentaria custos e impactaria a atividade.
“O mercado reage, porque uma vez que você promete uma meta e não cumpre, há um desgaste”, diz Fernando de Holanda Barbosa, da FGV/EPGE. Mesmo que o quadro mais pessimista não se confirme, os novos números de Levy atestam um período mais mais longo de ajuste – a previsão de um superávit de 2% foi postergada em dois anos – deixando mais distante a perspectiva de uma retomada, sobretudo pela dificuldade de alavancar a confiança de empresários e consumidores, ponto essencial destacado pelo ministro.
Indica ainda a necessidade de se iniciar um debate amplo sobre o ininterrupto crescimento das despesas públicas, num cenário em que as receitas tendem a ser mais tímidas com o fim do boom das commodities. Apenas os gastos com Previdência acrescentam uma demanda de superávit adicional de 0,3 ponto percentual do PIB ao ano, segundo o banco Itaú. O plano original de Levy não deu certo. Onde foi que ele errou? Subestimou o tamanho da recessão – e os respectivos impactos na arrecadação – e sucumbiu à crise política, cujo desfecho ainda é incerto.
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Pedaladas legais?
Em resposta aos apontamentos de irregularidades levantados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em relação às contas da presidente Dilma Rousseff de 2014, a Advocacia Geral da União (AGU) ressalta, por diversas vezes, que a Corte não pode adotar sanções para entendimentos que foram aprovados no passado, sob pena de contaminar decisões anteriores e ferir os princípios de legalidade e de segurança jurídica. Abre espaço, porém, para que modificações sejam feitas no futuro. Como no caso das chamadas pedaladas fiscais, em que o governo é acusado de ter usado recursos de bancos públicos para pagar obrigações da União. “Caso se entenda que esse procedimento, que se considera lícito e benéfico, inclusive ao beneficiário, que não sofre atraso, merece aprimoramento, devem ser aplicados aos eventos futuros”, afirma a AGU na defesa.
Sobre esse tema, o governo ressalta que saldos negativos são pontuais e ocorrem desde 1994. Reforça a idea de que trata-se apenas de uma prestação de serviço, feita há duas décadas, rebatendo a tese apontada pelo TCU de que configurava-se operação de crédito. No documento de defesa, com mais de 1.000 páginas, apresentado na quarta-feira 22, o governo descarta a hipótese de financiamento feito pelo FGTS e o Finame, em cerca de R$ 30 bilhões, alegando que não se tratam de instituições financeiras e que eventuais ajustes na dívida poderiam implicar em alterações significativas na série de dados, com impactos na credibilidade das estatísticas e avaliações de agências de risco, por exemplo.
Para justificar a falta de contingenciamento diante da concreta queda de receita, outro destaque do TCU, o governo sugere que o comportamento das receitas mudou drasticamente apenas nos últimos meses, culpando a queda nos preços de commodities como petróleo e soja, e justificando os efeitos econômicos e sociais “bastantes severos” que o corte poderia gerar. Com a defesa em mãos, a previsão é de que o TCU se manifeste até meados de agosto. A decisão é importante porque pode balizar uma reprovação das contas no Congresso, e levar, no cenário mais extremo, à abertura do pedido de impeachment da presidente Dilma.