21/11/2014 - 20:00
O visitante que chega à sede da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia federal encarregada de fiscalizar o mercado de capitais, na região Central do Rio de Janeiro, defronta-se com um paradoxo logo na entrada. “Xerife” do mercado, a CVM é, por lei, responsável pelo escrutínio de cifras estratosféricas. O edifício comercial em que está instalada, antigo e discreto, reclama urgente renovação. O aspecto dos 16 andares ocupados pela Comissão também não é muito diferente. Excetuando-se as catracas eletrônicas para o controle dos visitantes, os lambris de madeira das paredes lembram os escritórios dos anos 1970.
Assim como o cenário espartano destoa da importância da CVM, a eficácia de sua atuação para fiscalizar o mercado vem sendo questionada, tendo em vista os dramas mais recentes que tiveram como palco o pregão da bolsa, como os da Petrobras e da OGX. Escândalo vai, escândalo vem, todos se perguntam: onde estava o xerife? Em princípio, em toda parte e em lugar nenhum. As atribuições da CVM são várias. Incluem a fiscalização dos R$ 2,66 trilhões que cerca de dez milhões de investidores confiaram aos quase 14 mil fundos de investimento em atividade, geridos por 3.347 gestoras e administradoras.
Também cabe a ela fiscalizar o comportamento das corretoras de valores e das distribuidoras, verificar a lisura das aberturas de capital e das vendas de ações e conferir, em tempo real, se as transações com as ações das 647 empresas abertas não estão sendo distorcidas pelo acesso a informações privilegiadas. Ela também tem de conferir o trabalho dos auditores independentes, responsáveis pela validação das demonstrações financeiras das companhias, tema que ganhou importância nas últimas semanas desde que a PriceWaterhouseCoopers (PwC) se recusou a chancelar os resultados da Petrobras no terceiro trimestre (leia mais aqui).
Se comparássemos a missão da CVM de fiscalizar, regulamentar e disciplinar o mercado a uma luta de boxe, ela estaria sendo travada em condições desiguais. Em um canto do ringue está um peso-pesado, o mercado financeiro. Seus profissionais, em geral excepcionalmente bem formados, estão equipados com os melhores computadores e sistemas e são submetidos a uma competição incessante. Mais importante, esses executivos movidos pela ambição são regiamente pagos para descobrir brechas na regulamentação de maneira a suplantar a concorrência. No outro canto do ringue, porém, o desafiante é um peso-pena.
Fundada em 1976 com a promulgação da Lei do Mercado de Capitais, a CVM é uma autarquia com 650 funcionários, em sua grande maioria servidores admitidos por meio de concurso – o último deles, realizado em 2010, destinava-se a preencher 150 vagas, mas até agora nem todos os aprovados foram convocados. Em meados deste ano, a CVM foi autorizada a convocar 69 candidatos aprovados. “Alocamos esse contingente em áreas onde claramente pode haver aperfeiçoamentos de processo, inclusive às funções de supervisão e fiscalização”, informou a Comissão à DINHEIRO, em uma entrevista por e-mail.
É um avanço, mas, só para comparar, nos Estados Unidos, a Securities and Exchange Comission (SEC), irmão americano da CVM, conta com pelo menos 1.000 técnicos para ficar de olho nas irregularidades do mercado (dentre elas, as cometidas na Petrobras, que tem ações negociadas em Nova York). Elevar o contingente não é apenas uma questão de colocar mais munição à disposição do xerife. É preciso melhorar a pontaria dos técnicos. O recrutamento dos cerca de 500 funcionários efetivos segue as idiossincrasias do serviço público. A pontuação no concurso determina a ordem de chamada dos aprovados.
Para participar, o candidato precisa comprovar que concluiu um curso superior. Assim, ao lado de advogados, administradores, economistas e contabilistas, há técnicos com formação em pedagogia, história, geografia ou mesmo medicina. “Isso cria uma dificuldade adicional na execução das tarefas”, avalia um dirigente do órgão que fez comentários em condição de anonimato. “As pessoas da base são competentes e dedicadas, mas muitas delas possuem apenas conhecimento teórico do assunto, sem muito contato com os problemas do dia a dia.”
A solução seria investir maciçamente em treinamento dos funcionários e na atualização dos sistemas, pois boa parte das transações financeiras atualmente ocorre por meios digitais. Aqui, no entanto, há mais um problema. A CVM é responsável por aplicar multas para os participantes do mercado que não seguem as regras. Faz isso com funcionários muitas vezes pouco qualificados e sem condições de capacitá-los por falta de recursos. Em 2013, foram arrecadados R$ 229 milhões e, em 2014, a cobrança até julho somou R$ 116,8 milhões. Se a CVM fosse uma empresa, ela exibiria um faturamento razoável, mas esse dinheiro não fica lá.
Em sua grande maioria, os recursos são creditados no fundo do Tesouro Nacional destinado a proteger os direitos difusos. Todos os anos, a autarquia tem de negociar seu orçamento no Tesouro, assim como outros departamentos subordinados ao Ministério da Fazenda. E a concorrência é difícil, pois o dinheiro tem de ser repartido com Banco Central e Receita Federal, muito mais importantes estrategicamente para o governo e com muito mais poder político. O pouco dinheiro que chega é usado, em geral, com despesas administrativas e de pessoal. O que sobra para investir em treinamento e aperfeiçoamento dos sistemas é pouco.
Em 2013 foram apenas R$ 430 mil, ou 0,2% do total. Uma piada. Essas deficiências tornam a CVM menos eficaz do que poderia ser. Um bom exemplo é a fiscalização dos auditores independentes. Há 419 empresas de auditoria cadastradas pela CVM. Segundo Idésio da Silva Coelho Júnior, diretor-técnico do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon), nas quatro maiores – PwC, Ernst Young, KPMG e Deloitte – a fiscalização é anual. Nas menores, os fiscais da CVM aparecem a cada dois anos. Essa atuação, porém, resume-se a analisar um único trabalho por vez. Dessa forma, fica mais fácil para gestores mal intencionados burlarem os auditores e conseguirem a aprovação de balanços fraudados, como os demonstrativos recentes da Petrobras, colocados sob suspeição pela PwC.
Coelho não faz comentários específicos sobre a estatal petrolífera, mas avalia que, tendo em vista que os fraudadores montam estruturas complexas para disfarçar os malfeitos, a probabilidade de a CVM detectar uma fraude é pequena. O assunto já ganhou contornos políticos. No dia 14 de novembro, o deputado federal Antônio Imbassahy (PSDB-BA), líder do PSDB na Câmara, protocolou um pedido para que a Controladoria-Geral da União (CGU) apure se o xerife cumpriu seu dever de investigar possíveis operações irregulares de auditorias independentes contratadas pela Petrobras com prejuízo aos investidores no mercado. “O Leonardo Gomes Pereira, presidente da CVM, tem ligações com o governo”, disse Imbassahy.
“Protocolamos essa denúncia na CGU porque há uma omissão completa da CVM. Como é que eles não viram isso?”, questiona. Imbassahy pediu também que a CGU determine se há conflito de interesses entre comandante e comandado. A CVM é subordinada ao Ministério da Fazenda e o titular, Guido Mantega, preside o Conselho de Administração da Petrobras. Depois da Petrobras, o caso mais rumoroso envolvendo a CVM é a acusação ao empresário Eike Batista de usar informações privilegiadas para vender ações da petrolífera OGX e do estaleiro OSX entre maio e junho de 2013, antes que se tornassem públicas notícias da impossibilidade de a empresa extrair petróleo na quantidade esperada. Ainda em abril de 2013, Batista vendeu ações da OSX dias antes de o Conselho alterar o plano de negócios, autorizando demissão de funcionários e cancelamento de projetos.
O empresário teria novamente vendido ações da petroleira com base em informação privilegiada em setembro de 2013, antes de ele mesmo anunciar que não tinha recursos suficientes para capitalizar a OGX, um compromisso assumido em outubro do ano anterior. Pelas contas que a CVM anexou ao processo, cujo julgamento começou na terça-feira 18, Batista lucrou no mínimo R$ 124 milhões. “Meu cliente já demonstrou várias vezes perante a CVM que é inocente, e estou confiante na Justiça”, diz Sérgio Bermudes, advogado de Batista. As críticas mais fortes à CVM no caso do “Grupo X” foram de que a autarquia não impediu a atuação do empresário, que captou R$ 6,7 bilhões na abertura de capital da OGX, em abril de 2008, o maior lançamento do mercado brasileiro até então. Os prognósticos são ruins.
Em 2010, as ações da Mundial, empresa gaúcha fabricante de produtos para manicure e esmaltes, chegaram a ser mais negociadas que os papéis da Petrobras, infladas por manipulações de mercado conduzidas pelo empresário Michael Ceitlin, fundador da Mundial. A chamada “Bolha do Alicate” chegou à Justiça, mas Ceitlin não foi condenado. Pereira – que não concedeu entrevista à DINHEIRO – não comenta o caso da OGX, da Petrobras ou da Mundial. Seus únicos comentários sobre a atuação da autarquia reconhecem deficiências nos processos e a necessidade de qualificar melhor os funcionários.
Segundo Pereira, o banco BTG Pactual foi questionado pela área técnica da CVM por uso de informações privilegiadas em negociação com ações, mas o processo foi mal instruído e caiu diante do crivo do Colegiado, órgão máximo de decisão. O xerife, como se vê, tem pés de barro e precisa melhorar sua mira. Seria importante, em nome da transparência, a CVM tornar público o que tem feito internamente para evitar novas injustiças e dar o nome de outras empresas e executivos que foram indevidamente acusados de irregularidades por conta do despreparo dos servidores públicos.
Colaborou: Carolina Oms
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