25/04/2012 - 21:00
Uma comitiva de 12 pessoas chegou por volta do meio-dia da segunda-feira 16 à rua Macacha Guemes, 515, em Buenos Aires, endereço da petroleira Repsol-YPF, no charmoso bairro de Puerto Madero. Na portaria do moderno edifício, projetado pelo badalado arquiteto César Pelli, o grupo se apresentou como emissário do governo da presidenta Cristina Kirchner e anunciou que subiria ao segundo andar do edifício, onde os diretores da espanhola Repsol, controladora majoritária da YPF, estavam instalados. “Somos os novos interventores da companhia e vocês têm 15 minutos para pegar suas coisas e deixar o prédio”, avisou um dos integrantes da comitiva ao chegar ao escritório.
Manifestação em Buenos Aires: Trinta anos depois da aventura nas
Ilhas Malvinas, argentinos se mobilizam em apoio a uma causa sem futuro.
Foi uma ação orquestrada: na mesma hora, as televisões em todo o país mostravam o pronunciamento da presidenta em cadeia nacional, anunciando o envio de um projeto ao Congresso, declarando a petrolífera Repsol-YPF, a maior companhia privada do País, com um faturamento de US$ 14 bilhões, de “utilidade pública” e “sujeita à expropriação”. Na prática, tratava-se de uma reestatização da YPF, uma das mais antigas companhias de petróleo do mundo, privatizada em 1999, no governo do presidente Carlos Menem. O governo pretende assumir os 57% da YPF que pertencem à multinacional espanhola, alegando descumprimento de planos de expansão.
Apelo ao nacionalismo: a expropriação decretada pela presidenta
Cristina Kirchner foi mais radical que as da Venezuela e Bolívia.
“A falta de investimentos da Repsol fez com que, em 2011, a Argentina passasse de país exportador a importador de energia”, disse Cristina, legitimando, com uma manobra populista, a intervenção que mandou para casa 45 funcionários espanhóis dos quadros da YPF, entre diretores e técnicos especializados em petróleo. O ministro do Planejamento da Argentina, Julio De Vido, e o vice-ministro da Economia, Axel Kicillof, homens fortes do governo de Cristina, chegaram assim que os executivos da Repsol saíram, para efetivar a intervenção na YPF. “Só nos deixaram sair com nossos objetos pessoais”, declarou um dos espanhóis ao jornal El Clarín. “Me senti um bandido saindo pela porta dos fundos.” A empresa tem 16 mil empregados.
Dois dias depois, Cristina, que se pretende uma Evita Perón do século 21, continuava fazendo apelos fáceis ao nacionalismo. “Estamos recuperando um instrumento estratégico em 2012”, disse a presidenta. O episódio foi uma hecatombe para a Repsol, que comprou a YPF no processo de privatização promovido por Menem, em seuúltimo ano de mandato. “Estes atos não ficarão impunes”, reagiu Antonio Brufau, presidente mundial da Repsol, na terça-feira 17. Cerca de 35% da receita da companhia vem da Argentina, e por isso suas ações desabaram 40% em Nova York, depois da intervenção governamental. “Essa atitude não é própria de um país moderno”, afirmou Brufau, que quer uma indenização de US$ 10,5 bilhões pela expropriação, e prometeu levar o assunto à discussão no tribunal de investimentos do Banco Mundial.
Brufau, da Repsol: “Esta atitude não é própria de um país moderno”
A população de Buenos Aires celebrou o anúncio num primeiro momento, agitando bandeiras da YPF nas ruas da capital. No Exterior, a reação foi inversa. A expropriação colocou uma pá de cal em qualquer esperança de a Argentina recuperar a credibilidade perdida entre os investidores desde o calote da dívida de US$ 82 bilhões em 2001. O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, afirmou que a nacionalização foi “um erro”. O jornal americano Wall Street Journal disse que o mundo civilizado entendeu a medida contra a Repsol como um roubo, sugerindo que o país seja expulso do G-20. O economista-chefe da BCP Securities, Walter Molano, também fez uma análise ácida. “É difícil levar a Argentina a sério”, afirmou. Hoje, o risco-país já alcança mil pontos, enquanto o do Brasil é de 154.
Indiferente às reações ao seu ato inopinado, o governo Kirchner seguiu estimulando a euforia populista ao defender a expropriação da petroleira em audiência no Congresso, na terça-feira 17. “São uns idiotas os que acham que o Estado seria tão estúpido a ponto de cumprir com o que diz a empresa”, afirmou o inflamado vice-ministro da Economia, Axel Kicillof, numa exposição de duas horas e meia, em que não faltaram os adjetivos “estúpidos” e “palhaços” para se referir aos dirigentes da Repsol. A Argentina pretende pagar, no máximo US$ 4 bilhões pela fatia dos espanhóis.“A paciência com a Repsol chegou ao limite”, disse Kicillof, um economista de 41 anos, do movimento La Campora, liderado pelo filho da presidenta, Maximo Kirchner, que vem ganhando força no governo de Cristina.
No Brasil, a atitude inesperada da presidenta Cristina gerou mal-estar entre as companhias brasileiras investidoras no país vizinho. Muitas delas já foram pegas de surpresa por medidas de última hora nesses nove anos de gestão Kirchner (veja quadro Os disparates do governo argentino). “Haverá uma insegurança geral no país e isso pode se refletir no consumo interno”, afirma o vice-presidente de uma multinacional brasileira, que não quer ouvir falar de novos investimentos na terra de Gardel neste momento. Um executivo de uma grande empresa espanhola, que atua nos dois países, também deve rever seus planos. “Nossas operações não foram afetadas, mas, com certeza, consideramos que o risco de operar na Argentina aumentou.”
Jean- Paul Prates, diretor do Centro de Estratégias em Recursos Naturais e Energia (Cerne), observa que Cristina Kirchner conseguiu ser mais radical que os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Bolívia, Evo Morales, que alteraram as regras do setor de petróleo, em 2005 e 2006, respectivamente. “O Chávez, pelo menos, renegociou os royalties das petroleiras, e o Morales pagou um bom preço pelas refinarias que pertenciam à Petrobras e foram ocupadas na ocasião.” A nacionalização de uma companhia petrolífera não acontecia no mundo desde os anos 1970. A grande incógnita era o destino que o governo argentino reservava à Petrobras Argentina, segunda maior petroleira em atividade no país. No início do mês, a estatal brasileira perdeu duas autorizações de exploração na província de Neuquén, no sul, o que deixou sua presidenta, Graça Foster, reticente.
Gestão pelo medo: medidas intempestivas contra o setor privado e manipulação dos dados de inflação
tornaram-se a marca registrada dos governos Kirchner.
“Fomos surpreendidos”, disse Graça, na semana passada. “Nós havíamos cumprido o plano exploratório na íntegra.” No entanto, o risco de um golpe contra a Petrobras semelhante ao da Repsol é mínimo. Há três semanas, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, esteve na Argentina, onde ouviu da presidenta Cristina o pedido para que a Petrobras “investa mais e participe mais da vida do país”. Na sexta-feira 20, o ministro argentino do Planejamento, Julio De Vido, desembarcou em Brasília para repetir o pedido de Cristina. De Vido se reuniu com Lobão e com Graça Foster e avisou que o governo federal tentará reverter a cassação das concessões da petroleira brasileira feita pela província de Neuquén. “Invistam mais na Argentina”, disse ele. Para Leonardo Vivas, economista da Harvard Kennedy School, há razões para crer que as empresas brasileiras, como a Petrobras, não entrarão na linha de tiro de Cristina.
“Seria um passo suicida, num momento em o país não tem tantos amigos no mundo”, diz Vivas. “E o Brasil é um dos seus poucos aliados.” O que está claro é que a motivação da expropriação da YPF tem um viés político forte. A popularidade da presidenta, que havia alcançado 62% dos votos válidos em sua reeleição, em outubro do ano passado, caiu nos últimos meses, principalmente depois de um trágico acidente de trem que matou 51 pessoas em Buenos Aires, em fevereiro passado. Retomar o controle sobre um recurso natural estratégico como o petróleo de uma empresa estrangeira é sempre popular, ainda mais depois das gigantescas descobertas na região de Vaca Muerta, em Neuquén, confirmadas em fevereiro deste ano. A região pode ter reservas de até 22,8 bilhões de barris.
De Vido e Kacillof: interventores expulsaram 45 espanhóis da Repsol YPF.
“Queremos seguir o exemplo da Petrobrás”, defendeu-se a presidenta, citando a estatal, que lidera os investimentos em petróleo no Brasil. Outra razão seria provocar a União Europeia, que não apoiou o debate que Cristina vem tentando reabrir sobre a soberania das ilhas Malvinas, sob controle da Grã-Bretanha, depois da guerra perdida há três décadas pelos argentinos. “Estou realmente decepcionado com a Argentina”, disse o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, que cancelou um encontro bilateral, marcado para a semana passada. O primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, avisou que trabalhará incansavelmente para reverter a troca de poder na YPF. “Este é um grave precedente para as relações comerciais na América Latina”, disse Rajoy.
Na sexta-feira 20, o Parlamento europeu, a pedido da Espanha, propôs suspender as vantagens tarifárias concedidas à Argentina. Oargumento oficial para tomar de assalto a YPF e sua subsidiária YPF Gás, anunciada na quarta feira 18, o de escassez de investimentos, é controvertido. Graças a pesados subsídios do governo, os preços de petróleo e seus derivados estão congelados na Argentina, desde a década de 1990. Isso inviabilizou grandes aportes das petrolíferas em exploração. “O governo criou um problema e agora procura um culpado”, diz o economista Orlando Ferreres, da consultoria Ferreres e Associados, de Buenos Aires. A política de manter preços baixos artificialmente é defendida pelo governo como fundamental para sustentar o consumo e o crescimento econômico desde a debacle da economia, em 2001.
Euforia deslocada: a primeira reação dos argentinos foi favorável à expropriação, mas a população
vai sofrer com o impacto na economia.
Sempre que pode, a presidenta destaca as “taxas chinesas de crescimento”, em média de 7,5% nos últimos anos, com exceção de 2009. O problema é que como os dados da inflação são ostensivamente manipulados e questiona-se se o crescimento real não seria menor. Os dados oficiais são de uma inflação anual de 10%, enquanto o cálculo das consultorias privadas giram em torno de 25%. Nessa economia disfuncional, a mão pesada do governo é sentida em todos os níveis. A viúva de Kirchner procura emular o falecido marido praticando uma “gestão pelo medo”. Até mesmo a divulgação pública de índices alternativos de inflação foi proibida. As consultorias que ousam desobedecer são multadas. Ninguém se atreve a enfrentá-la, temendo represálias.
Durante a audiência no Congresso para discutir o projeto de expropriação da YPF, por exemplo, 15 economistas foram convidados a apresentar sua visão sobre a atual política econômica. Ninguém apareceu por receio de virar alvo de perseguição. Entre os parlamentares, entretanto, a nacionalização teve ibope garantido: todos os partidos, da União Cívica Radical ao Partido Justicialista, de Cristina, aprovaram o projeto por folgada maioria. Na seara econômica, as medidas têm sido especialmente duras com os setores exportadores. Logo depois de anunciar a nacionalização da YPF, a Argentina suspendeu a licença de exportação da Bunge, uma das maiores empresas de commodities agrícolas do país. Segundo o governo, a Bunge, originalmente uma empresa argentina, mas que transferiu seu QG para os Estados Unidos, estaria devendo US$ 100 milhões em impostos.
Em pânico, executivos da empresa em Buenos Aires, se recusaram a fazer comentários e pediram para que a matriz, em White Plains, no Estado de Nova York, também não se manifestasse. Entre os exportadores, um setor que vem sendo afetado pela política do governo, é o de carnes, onde é grande a presença brasileira com as subsidiárias da BRFoods, Marfrig e JBS. Taxas de 15% sobre a exportação e o compromisso de que a cada 3,5 quilos exportados, um seja vendido internamente a 40% do preço de mercado, jogaram os frigoríficos numa crise. As exportações de carne caíram mais de 60% entre 2005 e 2011, de 750 mil para menos de 300 mil toneladas por ano. Em janeiro, a JBS fechou seu abatedouro na cidade de Venado Tuerto e demitiu mais de 500 funcionários. O presidente da JBS no país, Artemio Listoni, disse à época que as medidas do governo tornaram a operação da planta inviável.
A JBS opera ainda outras três unidades, em Rosário, Pilar e Pontevedra. Mas, ao contrário do que vem fazendo no petróleo, a presidenta está reduzindo as restrições ao setor para tentar amenizar a crise. Na semana passada, apenas o imposto de exportação sobre carnes industrializadas caiu para 5%. Enquanto dificulta a vida das multinacionais, os governos Kirchner não deixam de ajudar os amigos, o que levanta suspeitas de corrupção. Na própria YPF, a Repsol vendeu ao empresário Enrique Eskenazi, do Grupo Petersen, 25% de suas ações, em 2007. Detalhe: foi o próprio grupo espanhol que emprestou a Eskenezi os recursos necessários para adquirir os papéis. Segundo um executivo da Repsol, a benemerência foi “estimulada” pelo então presidente Néstor Kirchner. Não por acaso, espera-se um loteamento político na “nova YPF”, como a empresa vem sendo chamada.
Fora do jogo: YPF sob controle da Repsol investiu US$ 12,6 bilhões nos últimos cinco anos.
A perspectiva é de uma gestão tocada por gente que, além de controversa, não entende nada de petróleo. Caso isso ocorra, será mais um passo para a completa desarticulação do setor de petróleo na Argentina, um país que foi totalmente autossuficiente até um passado recente. De quebra, levará à desmoralização de um governo que teima em privilegiar os artificialismos na condução da economia. Por mais que esse surto populista tenha um respaldo inicial entre os argentinos, o mais provável é que, com o passar do tempo, tal apoio refluirá, mergulhando o governo de Cristina numa crise cuja proporção é difícil de se prever. A seu modo, a intempestiva presidenta reforça as palavras lapidares de seu conterrâneo, o economista Raul Prebisch, fundador da Cepal: “A Argentina é um país subdesenvolvido por opção própria.”
Colaboraram: Cláudio Gradilone, Cristiano Zaia e Denize Bacoccina
De Buenos Aires