31/03/2023 - 5:30
Há pelo menos uma diferença fundamental no modelo de gestão do presidencialismo experimentado por Lula em seu primeiro mandato e o de sua jornada atual. Nesse intervalo houve empoderamento contumaz do Legislativo, em especial da Câmara dos Deputados nas decisões do Executivo. No primeiro embate nesse novo modelo, ainda em janeiro, Lula cedeu. Não entrou na briga para colocar seus coligados na presidência nem da Câmara nem do Senado. Gesto que deveria sinalizar uma bandeira branca, mas foi apenas o estopim para que Arthur Lira (presidente da Câmara) e Rodrigo Pacheco (do Senado) se sentissem mais confortáveis para sequestrar parte (a que envolve recursos públicos) da gestão de Lula III. Agora o petista tem um abacaxi para descascar. Com a reforma tributária, o arcabouço fiscal, a Lei das Licitações e outras pendências nas mãos do Legislativo ele precisará dobrar (e muito) para não ver sua governabilidade quebrar.
E a prova de fogo de Lula veio na forma do novo arcabouço fiscal, parido pelo governo federal na quarta-feira (29). A regra promete balizar as contas públicas é decisiva para abrir espaço para que o Banco Central reduza os juros, como deseja o presidente da República. Mas o texto enviado ao Congresso já nasceu com ruídos. Isso porque Lira e Pacheco queriam dividir a paternidade da proposta, como geralmente era feito no governo Jair Bolsonaro. Com o texto desenhado por Fernando Haddad (ministro da Fazenda), Simone Tebet (Planejamento) e Rui Costa (Casa Civil) o valor de barganha para uma aprovação célere sobe. E Lula sabe disso.
Por isso que na quarta-feira (29) e quinta-feira (30) aconteceu uma via sacra em Brasília. Primeiro a equipe econômica se encontrou com líderes da Câmara para apresentar as diretrizes da proposta. Um limite de tempo para que as despesas cresçam acima do PIB (que seria acionada apenas em casos específicos e condições adversas). O texto também determina que o cálculo do valor de investimento acompanhe ou o PIB per capita ou o absoluto — a depender de onde for maior o aumento. Tudo isso partindo da seguinte premissa: o déficit fiscal será zerado em 2024. Em 2025, a previsão seria de um superávit de 0,5% e, no ano seguinte, de 1%. Para 2023, a previsão de déficit ainda está acima de 1% (valor inferior aos 2,5% previstos no Orçamento). A proposta prevê que as despesas públicas não poderão crescer mais do que 70% da variação da receita, e ainda terão um limite máximo de expansão anual (leia boxe Haddad e sua não bala de prata).
À DINHEIRO, Rui Costa, da Casa Civil, afirmou que o projeto nasce robusto e sem necessidade de grandes alterações. “Foi feito com cautela e entendendo a necessidade do País”, disse ele. Questionado sobre a inclusão ou não de saúde e educação nas métricas de austeridade, ele disse que o governo já tem seu posicionamento (contrário a essa medida), mas que caberá ao Legislativo dar também suas impressões. E essa era a deixa que Lira e Pacheco esperavam. O Centrão, que segue dividido na base de sustentação do governo, já começou a dar as cartas. Irá capitalizar, e muito, a proposta. Uma liderança da Câmara que esteve no encontro com Haddad na quarta-feira disse ter sentido que o clima está propício para o acordo. “Ele [Haddad] entendeu nossos pontos e nossa preocupação com responsabilidade fiscal. O resultado pode não ser 100% o que eles querem, mas chegará perto de 90%”, disse ele, sob condição de anonimato. E essa animação não era só dele. Por volta das 22h a residência oficial de Lira estava repleta de carros, pessoas transitando e um clima de festa.

OUTRAS MEDIDAS A votação do arcabouço será o teste do governo no Legislativo e sua primeira incursão nessa construção de parlamentarismo no armário (em que o Legislativo executa, mesmo não sendo seu dever constitucional). Um projeto de poder que começa com Eduardo Cunha, em 2014, mas que ganha corpo e forma e objetivos mais claros sob a gestão de Lira. Um bom exemplo dessas manobras é o que está acontecendo com o Orçamento Secreto. Com o STF derrubando a constitucionalidade das RP9 (as emenda do relator), R$ 16 bilhões de 2023 ficaram sem destino. A solução, no início, foi que R$ 8 bilhões seriam para parlamentares por meio de emendas individuais (RP6). Os outros R$ 8 bilhões ficariam sob a tutela do governo federal (RP2). Mas Lira mudou esse curso ao determinar que quem escolheria o destino das RP2 não seria o governo, mas o relator do Orçamento (e seu aliado), o senador Marcelo Castro (MDB/PI). Castro, por sua vez, resolveu que as RP2 seriam distribuídas entre as comissões temáticas do Congresso e aprovadas pelos presidentes de cada uma delas. A maior ficou para a comissão de Desenvolvimento Regional, presidida por ele mesmo.
Outro exemplo da canetada é a briga por vagas nas comissões mistas. Lira decidiu que é desproporcional a determinação atual que oferece o mesmo número de cadeiras para senadores e deputados. Para ele, pelo fato de a Câmara ter mais representantes, deveria receber mais espaço. O assunto tencionou a relação entre Pacheco e Lira, que já não vinha das melhores desde o início do ano. O ponto central é que na pandemia essas regras foram afrouxadas e Lira quer manter assim. Pacheco, por sua vez, entende que isso tira poder da Casa e é uma afronta.
Quem sai perdendo nessa briga? O governo federal, que tem uma lista com oito Medidas Provisórias (como a que garante salários equivalentes entre homens e mulheres, os ajustes do Bolsa Família e o próprio arcabouço fiscal) paradas em uma fila ilusória enquanto Senado e Câmara discutem cadeiras. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, advertiu sobre os riscos dessa batida de cabeça. “Não podemos esperar mais. Queremos um calendário até o final de junho para a votação de MPs”, disse à DINHEIRO. Mas isso não é tão simples porque envolve um fator ao qual o governo Lula não está totalmente habituado (mas pode tomar como exemplo o que aconteceu com Dilma Rousseff em 2016): o paredão Legislativo atravessando a República.
Haddad e sua “não-bala de prata”

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad formalizou (com 20 dias de atraso) sua rota para tirar o Brasil do caminho do endividamento público e perseguir o superávit fiscal. Apesar de parecer uma receita milagrosa ele deixou claro que “[a regra fiscal] não é uma bala de prata que resolve tudo, é o começo de uma longa jornada, mas esse é o plano de voo”. E dando combustível para a nova métrica decolar haverá um plano adicional de arrecadação do governo de até R$ 150 bilhões. “Todos me perguntam se vamos criar impostos. Não vamos. Vamos rever distorções e benefícios na cadeia produtiva”, disse. Sem detalhar quais são os setores ou como serão afetados, Haddad definiu apenas como “grandes jabutis tributários.” No radar do governo está, por exemplo o setor de apostas on-line. Com mais receitas, disse Haddad, entra a nova regra fiscal. A proposta que o ministro levou ao Congresso vem recheada de variáveis, o que é positivo do ponto de vista de não ser uma fórmula exata, mas negativo se entendida como muito “flexível”. Pela nova métrica, a meta do governo é ter superávit primário em 2025 e até lá foi composta uma espécie de colchão para período de oscilações positivas e negativas nas receitas e despesas. Com esse mecanismo anticíclico, a nova diretriz fiscal inclui o que Haddad chamou de “banda”, margem para que o crescimento real da despesa primária gire (invariavelmente) entre 0,6% a 2,5% ao ano.
O arcabouço estabelece um ponto de partida (teto de 70% da variação da receita para o aumento das despesas). Tudo com um teto de 2,5% na alta arrecadação ou 0,6% na baixa. No superávit o governo terá mais margem para investir e no déficit o bônus do ano seguinte cairá para 50%, uma espécie de punição. Com esse pacote o governo espera uma redução gradual e anual de R$ 80 bilhões (2023) até R$ 360 bilhões (2031) em juro da dívida pública, o que proporcionaria menos inflação e mais investimento privado.
No mercado acionário local, a princípio, a proposta foi bem recebida. No dia 30, o Ibovespa operava em alta de 1,45%, aos 103.390 pontos. O dólar em queda de 0,39%, a R$ 5,115. Os juros futuros recuavam em todos os vencimentos, com a taxa de depósito interfinanceiro (DI) para janeiro de 2024 a 13,18% ao ano (ante 13,22%) e para 2027 foi a 12,19% ao ano (ante 12,29% do fechamento do dia 29). Uma primeira impressão positiva para a “não-bala-de-prata”.