Uma multidão saiu do Largo da Batata, na zona oeste de São Paulo, na segunda-feira 17, por volta das seis horas da tarde, com destino desconhecido, mas com um objetivo muito claro: pressionar o governo do Estado e a prefeitura da capital paulista a revogar o aumento de R$ 3 para R$ 3,20 da passagem de ônibus, metrô e trem, que havia sido aplicado no início do mês. Quando alguns militantes do esquerdista PSTU tentaram erguer uma gigantesca bandeira vermelha para acompanhar a passeata, a reação foi imediata. “Sem partidos! Sem partidos!”, gritaram em uníssono os manifestantes, muitos dos quais nunca haviam se visto antes, mas que seguiam rigorosamente uma das regras preestabelecidas, horas antes, pela internet. Sem bandeiras, sem partidos. 

 

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Brasil Anonymous: manifestante protesta na Avenida Paulista. Ao fundo, a bandeira

do Brasil estampada no prédio da Fiesp

 

A multidão seguiu pela avenida Faria Lima, um dos centros comerciais e corporativos mais importantes da metrópole, e se espalhou por outras regiões . “Vem pra rua vem, contra a tarifa”, era um dos gritos mais ouvidos ao longo do trajeto pelos 60 mil manifestantes que marchavam, estimulados por aplausos de pessoas que acompanhavam o desfile do alto dos prédios. Com flores e celulares na mão, muitos vestidos com a máscara do personagem Anonymous, famoso desde o movimento Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, em 2011, os participantes da passeata, na maioria jovens, entre 15 e 30 anos de idade, tomaram endereços conhecidos pela efervescência econômica, como a avenida Luis Carlos Berrini e avenida Paulista, onde os luminosos da sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) acenderam as cores da bandeira nacional, acompanhando o clima de resgate da cidadania dos manifestantes. 

 

Tudo, aparentemente, por R$ 0,20. Enquanto isso, em Brasília, milhares de pessoas invadiam a cobertura do edifício do Congresso Nacional e, no Rio de Janeiro, uma multidão cercava o prédio da prefeitura. As imagens do povo na rua – 250 mil pessoas em todo o Brasil, segundo os cálculos iniciais – contagiaram o restante do País, arrastando no dia seguinte outras capitais, como Recife, Salvador e Porto Alegre. Nem a vitória parcial do Movimento Passe Livre após 14 dias de protestos esfriou os ânimos: a massa humana chegou a um milhão de pessoas em várias metrópoles na quinta-feira 20, um dia depois do cancelamento dos aumentos no Rio de Janeiro e em São Paulo. 

 

Cenas de depredação e violência, com a tentativa de invasão do palácio do Itamaraty, em Brasília, levaram a presidenta Dilma a convocar uma reunião de emergência com alguns ministros na sexta-feira de manhã. Fica a pergunta: que País é esse? É preciso abandonar o pensamento linear e a objetividade dos manuais da ciência política para compreender este novo momento no Brasil, que começou com o utópico movimento pela revogação das tarifas de transporte público. A lenta transformação começou desde que a internet trouxe a possibilidade de conectar as pessoas e de trocar informações em frações de segundo, multiplicando de forma exponencial o poder de mobilização de multidões. 

 

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Ação: milhares de manifestantes protestam no Rio de Janeiro, em Brasília,

em São Paulo e em dezenas de cidades pelo país,

na maior mobilização popular em 20 anos

 

Utilizando um dos bordões mais cantados na semana passada, “o povo acordou” e saiu do Facebook. Bandeiras contra a corrupção da classe política, a gastança nos estádios da Copa, a homofobia, a saúde e a educação de baixa qualidade ganharam os cartazes dos manifestantes. Não por acaso, as seguidas manifestações atingiram, em tempo recorde, seu objetivo. No Recife, a briga era pela redução de R$ 0,10 na passagem. O governador do Estado, Eduardo Campos (PSB), pré-candidato declarado à sucessão de Dilma, agiu rapidamente e anunciou o cancelamento do aumento na terça-feira 18. Os prefeitos de São Paulo e do Rio de Janeiro, Fernando Haddad (PT) e Eduardo Paes (PMDB), tentaram resistir, mas os ânimos exaltados de algumas minorias e a imensa mobilização de manifestantes pacifistas fizeram com que eles recuassem um dia depois. 

 

“Decidimos, em conjunto com a Prefeitura de São Paulo, suspender o aumento dos R$ 0,20 concedidos no início de junho”, disse o prefeito do Rio, onde a tarifa de ônibus representa 10% no orçamento familiar de quem ganha até R$ 3,4 mil mensais. Assim como em São Paulo, as tarifas do metrô e do trem do Rio, que estão sob responsabilidade do governo do Estado, também recuaram. “Nossa total prioridade ao transporte coletivo de qualidade”, disse um constrangido governador Geraldo Alckmin, ao lado de Haddad. “Estaremos em diálogo permanente com a população de São Paulo”, disse o prefeito. As cândidas palavras dos governantes em nada lembravam o desdém com que trataram o assunto nos primeiros dias, quando disseram que o aumento era irrevogável. 

 

A medida deve ter um impacto no orçamento público de pelo menos R$ 200 milhões anuais, no Rio, e de R$ 650 milhões, em São Paulo. Era isso ou brigar contra a voz das ruas, um verdadeiro suicídio político. Como eles, os prefeitos de Porto Alegre, João Pessoa, e de cidades menores, como Mogi das Cruzes, Osasco,Campinas e Guarulhos, na Grande São Paulo, deixaram-se guiar pelo instinto de sobrevivência. Embora não afetem os planos de investimentos das empresas (leia reportagem à aqui), os protestos têm força para mudar a agenda política e econômica do País. Um levantamento da empresa Scup, de monitoramento de mídias, revela que, entre os dias 12 e 17 de junho, 79 milhões de pessoas foram impactadas pelas informações e imagens replicadas na internet sobre as passeatas. 


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Reação: Dilma convoca reunião de emergência. Paes, Alckmin e Haddad voltam

atrás nos aumentos das tarifas de ônibus

 

Foram registradas manifestações em pelo menos 40 cidades no Exterior, de Lisboa a Dublin, de Berlim, a Nova York. “Não é por R$ 0,20, é por dignidade” e “Enfia os R$ 0,20 no SUS” foram algumas frases exibidas pelos cartazes da juventude. Um dos alvos preferidos dos jovens foi a Copa do Mundo, levando em conta o clima da Copa das Confederações que teve início no dia 15. “Dilma, me chama de Copa e investe em mim. Ass: Educação, Saúde e Transporte”, era um dos cartazes mais vistos nas ruas. A presidenta Dilma foi um alvo constante dos protestos. Ela já havia sentido o peso da insatisfação popular durante a abertura oficial da Copa das Confederações, no estádio Mané Garrincha, em Brasília, quando foi vaiada duas vezes. 

 

Talvez por isso, a presidenta tenha mantido uma postura cautelosa na análise das manifestações. “Essa mensagem direta das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do Legislativo e do Judiciário. É de repúdio à corrupção e ao uso indevido do dinheiro público”, disse Dilma, durante o lançamento do marco regulatório para o setor de mineração, no Palácio do Planalto, na manhã de terça-feira 18. Na verdade, o governo federal percebeu que estava se defrontando com um vespeiro imprevisível, num momento delicado, em que a economia anda devagar, a inflação soa o alarme e as pesquisas de opinião pública confirmam o descontentamento dos brasileiros com a presidenta Dilma. 

 

Uma pesquisa divulgada pelo Ibope e pela Confederação Nacional da Indústria, na quarta-feira 19, revelou que a avaliação positiva do governo caiu de 63% em março para 55% neste mês – feita entre os dias 8 e 11 de junho, a enquete não captou os protestos mais barulhentos, que aconteceram nos dias 13, 17, 18 e 20. Para corrigir rotas, o Planalto pediu à Agência Brasileira de Inteligência para monitorar com mais atenção as redes sociais. A presidenta talvez tenha se dado conta de que é impossível desconhecer ou ignorar a realidade: setores significativos da sociedade brasileira adotaram a internet como um grande aliado para pressionar pela qualidade nos serviços públicos e por mais transparência na gestão pública e no comportamento de seus representantes. 

 

Isso significa, para o especialista em marketing digital, David Reck, da agência Enken, de São Paulo, que o que está por vir não é nada agradável para os que ocupam o poder. “Políticos, atenção: o seu inferno só começou”, diz Reck. Outras reivindicações, como a derrubada da PEC 37, que tramita no Congresso e prevê reduzir os poderes de investigação do Ministério Público, devem ganhar força junto à opinião pública. As empresas não podem ficar alheias ao Brasil que nasce nas ruas (leia reportagem sobre os jovens aqui). Quem sabe, agora, a insatisfação contra os impostos elevados e os gargalos sociais e econômicos possa crescer e provocar a nova onda de mudanças que o Brasil precisa.

 

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