14/06/2013 - 21:00
Foi com a voz calma e o semblante sereno que o técnico de sistemas americano Edward Snowden descreveu, em entrevista em vídeo publicada no site do jornal The Guardian, no domingo 9, o maior esquema de espionagem digital de que já se teve notícia. Segundo ele, sob ordem direta do governo dos EUA, milhões de telefones e informações pessoais postados na internet são monitorados há anos pela Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês). O programa de vigilância tem até nome: Prism. “Da minha mesa, eu poderia grampear qualquer um: você, um juiz federal ou o presidente dos Estados Unidos, se tivesse o e-mail pessoal dele”, disse Snowden.
Refugiado em Hong Kong: Edward Snowden, o pivô do escândalo, diz acreditar
nas leis da cidade chinesa, onde está escondido
Suas revelações colocaram em maus lençóis não apenas a reputação do governo de Barack Obama, mas também a de diversas empresas, a começar por aquela para a qual trabalhava, a Booz Allen Hamilton, uma das principais consultorias de gestão e serviços de tecnologia do planeta. A companhia é prestadora de serviços para a NSA, e foi nessa condição que Snowden teve acesso ao programaPrism. A reação da Booz Allen, companhia controlada pelo Carlyle Group, uma das maiores gestoras de fundos private equity do mundo, veio no dia seguinte. A empresa demitiu Snowden, ex-funcionário da CIA que trabalhava havia três meses no escritório da consultoria no Havaí.
O estrago causado à imagem da empresa, no entanto, já estava feito. Afinal, o fato de um empregado seu dar com a língua nos dentes pode arranhar sua imagem, elemento crucial para uma empresa que tem 98% de seu faturamento de US$ 5,8 bilhões vindo de contratos com o governo dos EUA – muitos deles, sigilosos. A conexão da Booz Allen com a Casa Branca é íntima. O atual diretor da NSA, James Clapper, é um ex-executivo da companhia. Seu antecessor na agência, John McConnell, é atualmente vice-presidente da Booz Allen. O Carlyle Group aprovou a fórmula e fez um investimento de US$ 910 milhões em 2008 para se tornar sócio-majoritário da empresa – a revista Forbes estima que hoje o investimento já tenha mais que triplicado.
O mercado parece ter percebido que os bons tempos podem ter ficado para trás. As ações da companhia tiveram uma queda de 6% nos três dias seguintes à revelação de que as informações foram dadas por um de seus funcionários – na quinta-feira 13, ensaiou uma recuperação tímida, de 1,3%. Até o fechamento desta edição, a Booz Allen Hamilton não havia voltado a tratar publicamente do episódio. Depois de atear fogo no circo, Snowden tenta agora garantir sua liberdade. Ele optou por se refugiar em Hong Kong, país que tem um “histórico de defesa da liberdade de expressão”, conforme suas palavras.Conscientemente ou não, Snowden foi se abrigar no olho do furacão da política internacional.
Crise de confiança: Ações da Booz Allen Hamilton, de Ralph Shrader,
caíram depois da denúncia do ex-funcionário
Em 2009, a tensão de uma possível guerra cibernética entre EUA e China chegou a um patamar nunca antes visto, em razão de uma suposta violação de segurança nos servidores do Google. Além disso, a empresa tinha de se submeter a regras de autocensura no país. Obama chegou a dizer, na época, que reagiria a um “ataque no ciberespaço, como faria diante de qualquer ameaça ao país”. O vazamento da existência do Prism provocado por Snowden foi feito dias antes da primeira visita do presidente chinês, Xi Jinping, aos EUA. Semanas antes, o jornal The New York Times publicara um editorial conclamando os presidentes a conversarem para evitar uma ciberguerra.
Diante do episódio, Obama mudou a retórica e agora diz que “não é possível ter 100% de segurança com 100% de privacidade.” Detalhe: essa tese já foi usada pela China em muitos casos para justificar uma suposta necessidade de invasão de privacidade. Como era de se esperar, o episódio também repercutiu intensamente entre empresas de internet envolvidas na história, como Facebook, Google, Microsoft, Apple, Yahoo! e AOL. Causou furor a denúncia do The New York Times de que algumas companhias, como Facebook, Google e Microsoft, teriam até mesmo proposto um portal para o governo fazer a coleta de dados de seus usuários – o Twitter teria se recusado a participar dessa negociação. Essas companhias digitais, que prestam serviços a bilhões de pessoas e sofrem uma crise de confiança com o escândalo, negaram prontamente colaborar com o programa Prism.
As empresas, no entanto, reconhecem que repassaram informações de seus usuários em função de ordens judiciais recebidas, mas negam dar acesso direto a seus servidores. Mesmo assim, internautas se revoltaram e criticaram duramente as companhias através das redes sociais. Elas passaram, então, a tentar desviar o foco da indignação generalizada para o governo do presidente Obama. Facebook, Microsoft e Google, por exemplo, publicaram textos em que propunham a divulgação de detalhes sobre todas as ordens judiciais. Em carta aberta ao procurador-geral dos EUA, Eric Holder, o Google disse ter trabalhado duro nos últimos 15 anos para ganhar a confiança de seus usuários.
“Pedimos a você que nos ajude a tornar possível ao Google publicar em nossos relatórios de transparência dados sobre as requisições do governo que envolvam a segurança nacional”, diz o texto, publicado no blog oficial da empresa e compartilhado milhares de vezes nas redes sociais. A Casa Branca ainda não se manifestou sobre o teor dessa proposta. O tom de preocupação entre as empresas do meio digital, no entanto, faz sentido. A computação em nuvem, grande tendência do mercado de TI, pede essencialmente que os usuários coloquem seus dados em servidores externos, que podem estar nos EUA, na China ou em qualquer lugar do globo. E a situação tem potencial para ficar ainda mais delicada. Em entrevista ao jornal South China Morning Post, Snowden sugere que teria mais revelações a fazer. O governo americano respondeu abrindo investigação penal contra Snowden. Se estiver encurralado, como será que o ex-espião da Booz Allen vai reagir?