Depois de comer um pão na chapa e tomar um café em uma padaria na região central de São Paulo, o analista de sistemas Thiago Martins, 33 anos, perguntou se poderia pagar a conta com bitcoin em vez de real. O atendente não entendeu nada e pediu para Martins explicar melhor o que estava propondo. Foi a deixa para ele fazer um discurso sobre a moeda digital bitcoin. Embora não seja lastreada por nenhum país ou banco, a moeda é cada vez mais utilizada no mundo. É usada, por exemplo, em transações dentro e fora da internet, como em compras de equipamentos eletrônicos, bicicletas, restaurantes, aluguel de pousadas e até drogas e armas. 

 

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Evangelizador: o programador Thiago Martins é um dos entusiastas que ajudam a disseminar

o novo meio de pagamento no Brasil

 

Com quatro anos de mercado, sua popularidade entre os usuários de internet vem crescendo, inclusive no Brasil, graças a evangelizadores como Martins. “Não quero mais o real”, afirma. “Com o bitcoin me sinto mais seguro e livre.” Se para o analista de sistemas é difícil entender por que a padaria ou outros estabelecimentos comerciais não aceitam o bitcoin, para alguns economistas existem motivos de sobra para preocupação. Um dos aspectos que os deixam de cabelos em pé com a moeda virtual é que, por não ser lastreada, os riscos de evasão fiscal, fraudes e fortalecimento do crime organizado são maiores. Além disso, o fato de essa moeda pirata ter sido inventada quase como uma história de ficção científica causa ceticismo entre os analistas. 

 

Cotado atualmente em mais de US$ 50, o bitcoin foi criado por um misterioso hacker chamado Satoshi Nakamoto – um nome japonês corriqueiro, equivalente a João da Silva. Quem é ele, quais foram suas motivações e por onde anda são algumas das perguntas que permanecem sem resposta. O fato é que a moeda foi lançada num momento peculiar: no começo de 2009, poucos meses depois da quebra do banco americano Lehman Brothers, que deflagrou a crise financeira internacional. Com as pessoas desconfiadas do sistema financeiro, a aceitação a uma alternativa a esse modelo foi facilitada. As transações e a emissão de cada bitcoin são feitas por meio de uma rede de computadores de forma análoga ao que acontece com as redes de trocas de arquivo da internet.

 

A tecnologia de compartilhamento de dados chamada de P2P (peer-to-peer), que teve no site Napster um dos pioneiros no fim dos anos 1990, faz com que os PCs conectados à rede “conversem” entre si de maneira descentralizada. Com o bitcoin, os usuários fazem as transações sem a intermediação de terceiros, o que barateia o custo. O envio de 1 BTC de uma carteira para outra tem custo zero. Todos os computadores conectados ajudam a processar e registrar a passagem da moeda de uma carteira para outra, assim como também ajudam a emitir novos bitcoins. Mais ou menos 25 bitcoins são garimpados – esse é o jargão usado no meio – a cada dez minutos. Atualmente, há cerca de 11 milhões de bitcoins no mercado, que valem mais de US$ 600 milhões na cotação das principais casas de câmbio internacionais que trabalham com a moeda, como MTgox, Bitfloor e Bitcoin-Central. 

 

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Aceitação crescente: Talita Noguchi (centro), dona do bar e bicicletaria Las Magrelas,

espera gerar novos negócios com o Bitcoin

 

SUBSTITUIÇÃO DE MOEDAS O surgimento do bitcoin é reflexo da tendência de substituição da moeda física pelos circuitos eletrônicos, que vem ganhando força desde os anos 1960, diz Gilson Schwartz, economista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP. Ele alerta, porém, que o fato de ser uma moeda sem lastro pode gerar problemas. “Há o risco de evasão fiscal, fraudes e fortalecimento do crime organizado”, afirma. O que reforça sua tese é o fato de o bitcoin já ter se tornado a moeda oficial do Silk Road, um obscuro site que vende heroína, LSD e maconha, entre outros tipos de drogas. Um dos estímulos ao uso do bitcoin nesse canal é o anonimato – ninguém sabe quem são os verdadeiros donos das carteiras. 

 

Além disso, cada usuário pode espalhar seus BTCs por diversas contas. Em defesa da moeda, seus entusiastas rebatem dizendo ser possível comprar drogas com real e dólar, por exemplo, sem que isso tenha dado margem a críticas a essas moedas. O bitcoin talvez ainda não seja uma prioridade na pauta dos governos, mas a mais forte propaganda dessa moeda foi realizada justamente pela Casa Branca. Quando o WikiLeaks, o polêmico site criado pelo australiano Julian Assange, divulgou comunicações secretas das embaixadas americanas, Washington articulou para que instituições de crédito não atendessem mais a página. Bank of America, Visa, MasterCard, Paypal e Western Union deixaram de prestar serviço aos ativistas do WikiLeaks, que quase fechou. 

 

A saída foi apelar para o bitcoin, contra quem o governo americano não pode fazer nada. Para bloqueá-lo, seria preciso desligar cada computador conectado à rede, uma tarefa virtualmente impossível. “Quando vi que o WikiLeaks aceitava doações num tal de bitcoin, na hora fui atrás para ver o que significava”, afirma Martins, um dos que conheceram a moeda graças à publicidade feita pela administração de Barack Obama. Ele e dezenas de usuários lutam para disseminar a moeda no Brasil, onde, embora esteja em expansão, o uso está anos-luz atrás da Europa e dos EUA. Enquanto já é possível pedir até pizza nos EUA com bitcoins, no Brasil uma boa parte do giro da moeda se dá por uma rudimentar troca de serviços e produtos no fórum Bittalk, que faz as vezes de uma lista de classificados. 

 

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Sufoco: ao ser abandonado pelas principais instituições financeiras,

Julian Assange, do WikiLeaks, apelou à moeda pirata

 

Dar o primeiro passo para entrar nessa comunidade, no País, não é fácil, pois não há uma casa de câmbio estabelecida. O mais próximo são sites que unem interessados em comprar e vender bitcoins. O principal deles é o Mercado Bitcoin, gerido pelo consultor de tecnologia mineiro Leandro César, 37 anos. Segundo ele, sua empresa conta com dois mil clientes brasileiros e a adesão à novidade deve dar um salto neste ano. “Um filão que pode impulsioná-la é o de jogos online”, afirma César. Apesar de trabalhar com uma moeda anárquica, César já se encrencou com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O problema surgiu quando tentou fazer um grupo de amigos adquirir máquinas de “mineração”. 

 

Afinal, quanto maior o poder de processamento dos computadores, mais bitcoins são ganhos. A CVM entendeu isso como um investimento, o que deve necessariamente passar pelo crivo do órgão. Uma comunicação foi enviada a César mandando-o apagar o anúncio, sob pena de receber uma multa. “Fiz o que me foi determinado, embora não esteja de acordo com a visão deles”, diz. Apesar do comunicado, tanto a CVM como o Banco Central não têm regras definidas quanto ao bitcoin. Isso pode mudar em breve, pois, ainda que esteja em fase embrionária, a aceitação da moeda por um número cada vez maior de estabelecimentos vai requerer um sistema de regulação em algum momento. Na Vila Madalena, em São Paulo, por exemplo, o bar e bicicletaria Las Magrelas já trabalha com bitcoin. 

 

A proprietária do local, Talita Noguchi, 27 anos, espera gerar novos negócios com isso. “Vamos atrair para cá programadores que não seriam nossos clientes costumeiros”, diz Talita. Ela foi convencida a aceitar o bitcoin por amigos que atuam na área de programação de computadores. O doutor em direito econômico e professor da faculdade Insper Jairo Saddi, no entanto, diz que dificilmente o bitcoin se expandirá para além dos círculos virtuais. “Tentativas de fazer moedas sem lastro ocorrem há séculos, mas todas fracassam”, afirma Saddi. Ele faz, no entanto, uma ressalva que pode significar um alento para os piratas do bitcoin. “Falar de uma moeda única para toda a Europa no século 19 era absolutamente utópico”, diz. “Hoje, o euro está aí, com todas as vantagens e desvantagens de uma moeda única.”

 

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