02/02/2016 - 18:00
Em 2014, quando os vencedores do prêmio Nobel da Paz foram anunciados, o indiano Kailash Satyarthi não era tão conhecido, inclusive por muitos em seu país. O fato de ter dividido o prêmio com a adolescente paquistanesa Malala Yousafzai, a ativista que desafiou o grupo extremista Talibã para poder estudar, ajudou nesse quase ostracismo de Satyarthi. No entanto, mesmo estando ao lado de uma das jovens mais admiradas do mundo na época, não faltaram motivos para ele também ser merecedor da principal premiação de direitos humanos do planeta. Hoje, aos 62 anos, o engenheiro de formação é um dos principais combatentes do trabalho infantil e da escravidão. Ativista desde a infância, quando recolhia livros velhos para jovens irem à escola, Satyarthi criou a Bachpan Bachao Andolan (BBA), em 1980. A organização foi a principal responsável pela libertação de mais de 80 mil crianças escravizadas na Índia. Sempre sorridente e afável com os admiradores, principalmente com aqueles sedentos por uma selfie, o ativista de fala pausada atendeu a DINHEIRO no evento de lançamento da #SomosLivres, campanha para a erradicação do trabalho escravo, apoiada pelo Ministério Público do Trabalho. “Cada vez que eu liberto alguém, eu liberto a mim mesmo”, diz ele. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
DINHEIRO – O senhor está na luta contra a desigualdade e a escravidão desde a infância. Agora, 26 anos depois da criação da BBA, como enxerga a situação do trabalho escravo?
KAILASH SATYARTHI – Ainda é vergonhoso para nossa sociedade, nesses tempos modernos, ter mais de 200 milhões de crianças em trabalhos análogos à escravidão. Ainda há diversos homens e mulheres nessa situação. E, mesmo que as pessoas não saibam, há diversas formas de trabalho escravo: por tráfico, por condições degradantes de trabalho, por pagamentos de dívidas, entre outros problemas. Existem tantas formas que se criou uma grande mancha negra em nossa Era e na sociedade.
DINHEIRO – Mas, não houve avanços nesse período de mais de cinco décadas que o sr. trabalha contra esse tipo de crime?
SATYARTHI – Estamos discutindo e falando mais sobre os efeitos causados por esse problema. Isso já é um grande avanço. Atualmente, há uma preocupação mundial com esse assunto. Antes, as crianças escravizadas não eram sequer lembradas. Eu vejo a diferença nos últimos anos, especialmente quando se trata da escravidão infantil. Afinal, do fim dos anos 1980 até meados de 2000, diminuímos em mais de 60 milhões o número de jovens em situação análogas à escravidão. É um ótimo progresso, mas, mesmo assim, ainda falta muito. Acredito que as pessoas ainda não enxergam a magnitude do problema, mesmo com esses números superlativos. É nossa missão mudar esse panorama.
DINHEIRO – O sr. acredita que a iniciativa privada está fazendo a parte dela?
SATYARTHI – As grandes corporações não podem simplesmente ignorar a existência do problema e a gravidade dele. Isso é positivo. Hoje em dia, a escravidão é um tema que é proibido deixar de lado. Todos necessitam entender que a economia não é um fim, é um meio para fazer da sociedade um lugar melhor. As empresas não estão apenas cuidando de máquinas, elas também fazem a diferença nessa luta. Só que elas precisam definir se vão fazer a diferença para melhor ou para pior. Os negócios não são nada mais do que trabalhos sociais, visando o bem-estar de toda a sociedade.
DINHEIRO – O sr. criou o selo Rugmark para diferenciar produtos de tapeçaria que não foram feitos por meio de trabalho escravo. Como essa estratégia transformou a sua luta?
SATYARTHI – Eu acredito que a maioria dos consumidores e a maioria dos negócios têm boas intenções. Nunca passou pela minha cabeça que todas as indústrias, todos os fabricantes de tapetes ou todos os restaurantes eram gananciosos e estavam trabalhando de maneira equivocada. Eu sei que muitos estão preocupados com os seus ganhos. Mas, ao mesmo tempo, eles não podem se esquivar da responsabilidade de criar uma sociedade melhor e precisam consertar todos os defeitos de suas empresas. Por isso, foi necessário mostrar aos consumidores as companhias que realizam um bom trabalho. Os produtos com o selo Rugmark dão a certeza para o comprador de que nada foi fabricado com mão de obra escrava. Os consumidores querem ter acesso a essas informações. Isso foi realizado no Nepal, no Paquistão e na própria Índia. Alguns importadores e exportadores pedem que o selo esteja presente para ser realizado algum negócio.
DINHEIRO – E as companhias deram apoio ao senhor?
SATYARTHI – Não é questão de me apoiar. Eles acreditaram na ideia e, inclusive, ajudaram a desenvolvê-la. Não apenas a campanha de conscientização, mas também na concepção dessa ideologia dentro das próprias fábricas. Elas ajudaram na criação de um mecanismo para identificar quando havia trabalho infantil nas confecções e isso teve impacto em mais crianças libertadas. O Rugmark nada mais é que um alerta ao consumidor, mas que possui um efeito transformador para toda a cadeia. Tenho certeza que se o cliente souber que algum dos produtos em sua cesta de compras foi concebido de maneira ilegal, a consciência dele não permitirá que ele conclua a compra. Mas, antes de cobrar essa atitude do consumidor, precisamos mostrar quais são as companhias que trabalham certo. Então, são necessários mais selos para outros tipos de indústria, pois diversos setores se aproveitam da mão de obra infantil para baratear seus custos.
DINHEIRO – Então, todos os cidadãos e entidades têm a mesma importância na resolução desse problema?
SATYARTHI – Vejo que existem quatro personagens na luta contra a escravidão. O primeiro deles, claro, são os governos. Eles são fundamentais para se ter o controle do problema. O seguinte é a sociedade civil. Em terceiro, a iniciativa privada. E, por último, instituições como as Organizações Não-Governamentais (ONGs). Todos se complementam e é necessário que haja diálogo entre as partes. Os quatro precisam unir forças para se chegar a um resultado que seja benéfico para toda a sociedade.
DINHEIRO – A respeito do Brasil, como o sr. analisa o momento atual do País na luta contra a escravidão?
SATYARTHI – O Brasil é um exemplo na luta contra a escravidão. O País mostrou que é possível ter boas leis e mecanismos institucionais, que podem ser seguidos contra o trabalho escravo. O Brasil tem algumas das leis mais progressistas do mundo, pois definem a escravidão em todos os pontos que ela existe, como jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho, além das formas mais conhecidas. Com isso, é possível trazer essas discussões para a sociedade civil.
DINHEIRO – Como a tecnologia tem auxiliado essa luta?
SATYARTHI – Uma coisa muito clara é que o conhecimento tecnológico está forçando todas as companhias a serem transparentes. As pessoas podem saber de tudo em menos de um segundo. Então, se a empresa não seguir regras, mas se mostrar consciente, seus consumidores estarão de olho nela. A liberdade do conhecimento está no começo e vejo que isso será ainda mais fundamental para erradicar o trabalho infantil e a escravidão.
DINHEIRO – O que a iniciativa privada deveria mudar para contribuir?
SATYARTHI – A regra número um das companhias, claro, é ganhar dinheiro. Ao mesmo tempo, nesses novos tempos, elas têm uma nova face. Muitas empresas já entenderam que precisam ser socialmente responsáveis e que isso pode agregar às suas imagens. No entanto, o que eu estou enxergando agora é que as empresas necessitam olhar os negócios com mais compaixão e inteligência. Não basta ganhar dinheiro. O crescimento econômico não pode ser justificativa para a escravidão. As companhias precisam criar um ambiente que seja bom para a sociedade também. As empresas necessitam olhar com responsabilidade e respeito para toda a cadeia: os fornecedores, os vendedores, os clientes e os seus trabalhadores. Se elas fizerem isso e tiverem um bom comportamento com todos que a cercam, creio que teremos boas mudanças no futuro.
DINHEIRO – Como o sr. se sente cada vez que liberta um grupo de crianças?
SATYARTHI – Cada vez que eu liberto alguém, eu liberto a mim mesmo. Toda vez que eu vejo a felicidade da liberdade, eu consigo ver Deus. Não sei quais deuses existem, mas eles estão nesses momentos. Liberdade é o principal presente divino e a escravidão é a maldição. Escravidão é o crime contra a divindade e a liberdade não pode ser negociada.