27/12/2013 - 21:00
O economista Edmar Bacha, que integrou a equipe responsável pelo Plano Real, guarda com carinho um autógrafo que pedira em nome dos seus filhos ao então presidente da República, Itamar Franco, em 1993. “Para Júlia e Carlos Eduardo, um abraço amigo e o meu desejo de que peçam ‘muita velocidade’ ao querido pai em benefício do nosso Brasil.” A dedicatória resume bem a pressa que Itamar tinha para implementar o novo plano econômico em gestação. Em entrevista à DINHEIRO, Bacha relata os bastidores da criação da nova moeda, que completa 20 anos no dia 1º de julho de 2014, e defende uma meta de inflação de longo prazo de 3%.
Qual foi seu papel na criação do Real?
Fui o assessor econômico designado para elaborar o plano. Quando entrei no Ministério da Fazenda, junto com Fernando Henrique Cardoso, fiquei solto para preparar o plano de estabilização. Na primeira etapa, que foi de março até agosto de 1993, nos dedicamos integralmente ao chamado PAI do real: o Programa de Ação Imediata, que era voltado para equilibrar as contas públicas e renegociar as dívidas do Estado. Um plano daquela magnitude deveria ser feito no primeiro ano de um governo recém-eleito, que contava com um enorme apoio no Congresso. Aquilo ali era uma situação política muito peculiar. Me recordo do dia 18 de agosto, quando o ministro Fernando Henrique me pediu que falasse com o presidente Itamar Franco e dissesse que estávamos trabalhando, mas que ainda faltavam certas etapas importantes até chegarmos ao resultado final. Na saída do gabinete do presidente, pedi ao Itamar um autógrafo para os meus filhos. Ele escreveu num pedaço de papel: “Para Júlia e Carlos Eduardo, um abraço amigo e o meu desejo de que peçam ‘muita velocidade’ ao querido pai em benefício do nosso Brasil.” Os políticos estavam ansiosos, mas nós sabíamos que não dava para fazer as coisas de forma abrupta, especialmente eu, que tinha participado do Plano Cruzado.
Em que momento decidiram anunciar o plano?
Entre agosto e setembro, a equipe foi reforçada pela entrada do Pérsio Arida, do Pedro Malan e, por dois meses, do André Lara Resende. Depois de muitas discussões internas, pensamos que valeria a pena anunciar o que queríamos fazer. Como havia um requisito fiscal prévio muito forte, que era uma reforma constitucional para congelar 20% das despesas obrigatórias, decidimos apresentá-lo e, se o Congresso aprovasse, partiríamos para a segunda etapa. O ministro Fernando Henrique anunciou as três etapas do plano: a primeira foi o envio ao Congresso da proposta de reforma constitucional, que se chamava Fundo Social de Emergência, a atual DRU (Desvinculação das Receitas da União). A segunda etapa era a unificação dos sistemas de indexação. Naquele tempo nem tínhamos decidido que iria ser a URV e nem tinha esse nome. A terceira etapa seria a reforma monetária, quando iríamos desindexar a economia, que era o truque.
Houve uma famosa reunião dos tucanos antes do discurso, não?
Isso, antes desse discurso, apresentamos as ideias para as lideranças do PSDB, em uma reunião na casa do Fernando Henrique, com a presença do então senador por São Paulo, Mário Covas. Expliquei o plano e o Covas me disse: “Mas, Bacha, quando cai a inflação?” E eu falei: “Lá para julho do ano que vem.” E aí ele me respondeu: “Você está maluco? A inflação está a 25% ao mês, você acha que vamos aguentar até lá?” Falei, finalmente: “Governador, eu não sei fazer de outro jeito. Precisamos de todas essas etapas, da aprovação da reforma para poder equilibrar o Orçamento, da introdução da URV e da transformação de todos os contratos econômicos em URV. Não tem jeito.” Aí o Covas disse algo que me emocionou muito: “Sr. Bacha, nesse partido, nós, políticos, damos o caminho político e vocês, técnicos, dão o caminho técnico. Se é isso que você tem a me dizer, então vou com o senhor para o precipício.”
Olhando 20 anos depois, o senhor teria feito algo diferente?
Queria ter conseguido fazer a reforma constitucional ampla, geral e irrestrita, na qual eu, o Nelson Jobim e o José Serra trabalhamos. O Fernando Henrique mostrou essa proposta para o Itamar, que a levou para o Congresso, mas o Congresso ignorou.
O Brasil pode ambicionar ter uma inflação de país desenvolvido?
Espero que sim. A inflação só está no patamar de 6% porque o governo está controlando os preços da Petrobras, energia, transportes e tudo mais. Sem isso, a inflação estaria em 7%. É muito alta. Cria uma propensão à reindexação muito grande. As pessoas ficam preocupadas em manter o poder de compra de seus salários. As empresas têm de ficar bolando mecanismos para se defender.
Qual seria a meta ideal?
O Brasil precisa perseguir uma inflação de 3%. Daí as pessoas falariam: “Tudo bem, com essa inflação nós convivemos bem”.
Que medidas devem ser tomadas para isso?
Uma ideia é manter a meta inflacionária de curto prazo, de 4,5%, mas acrescentar outra de longo prazo, de 3%, para 2020, por exemplo. Com isso, poderíamos pensar em coisas para assegurar que a inflação fique em 3%, em 2020, indo além do controle de juros. É dar um reforço do Tesouro ao Banco Central, ou seja, aliar uma política de controle monetário a uma política de controle de expansão de gastos do governo. A outra proposta é como dar mais potência à política monetária. A principal é a constatação de que, do total do crédito, 50% não são afetados pela Selic. É o crédito que o BB dá para a agricultura, que a Caixa dá para a habitação e que o BNDES dá para os amigos do rei. Em nada disso o BC apita. Em Brasília, os presidentes dessas instituições dão tchauzinho para o pessoal do BC. A política monetária atua apenas sobre o crédito livre, o que gera um esforço duas vezes maior. A minha proposta é encontrar alguma maneira de incluir o crédito dos bancos públicos no âmbito da política monetária, de tal maneira que, quando o BC apita que vai subir os juros, o BNDES contraia os créditos dele.
Há alguma chance de o real se tornar uma moeda de referência na América Latina?
O problema é que o Brasil é uma economia muito fechada. Somos a sétima maior economia do mundo, mas, em termos de exportação, somos a 25a. Exportamos menos que Taiwan. Quando se fala que a China quer ter o yuan como moeda de referência, ela pode. É a segunda maior economia do mundo e a segunda ou terceira maior exportadora. Nossa moeda não tem cacife real. Para isso, tem de ter produtos que as pessoas queiram consumir. Se não exportamos bens, como querermos exportar moeda?
Se pudesse escolher um tema para dar a mesma prioridade do Plano Real, qual seria?
Integração competitiva do Brasil no mercado internacional. Enquanto não nos tornarmos um grande exportador, participante ativo das correntes de comércio e das cadeias internacionais de valor, não conseguiremos fazer este País virar desenvolvido. Com políticas protecionistas, nós conseguimos chegar a uma renda média, mas não sairemos dela.
Como viu o acordo da OMC, em Bali?
A grande relevância desse acordo é mostrar que a OMC não está morta, diferentemente do que muitos imaginavam.