07/11/2014 - 20:00
Roberto Mangabeira Unger, 67 anos, nascido na Bahia e criado no Rio de Janeiro, tornou-se um dos mais influentes acadêmicos estrangeiros dentro da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, onde começou a lecionar em 1971. Com um estilo peculiar e forte sotaque americanizado, Unger ganhou voz ao se tornar um crítico ferrenho das políticas sociais focadas nas minorias, como o Bolsa Família. No governo Lula, ele dirigiu a controversa Secretaria Especial de Planejamento de Longo Prazo, a Sealopra. A experiência na vida política, entre 2007 e 2009, ajudou a nutrir sua teoria de que o País deve, urgentemente, encontrar um novo caminho. “O Brasil precisa romper as amarras do presidencialismo de coalizão monstrengo”, afirma. Em visita ao País, na semana passada, Unger falou à DINHEIRO.
DINHEIRO – Quais são os desafios do Brasil e do governo reeleito?
ROBERTO MANGABEIRA UNGER – O primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff representou o fim de um ciclo que começou na era Fernando Henrique e atravessou os dois mandatos de Lula. Nesse ciclo, houve a estabilização monetária, com ênfase na democratização da demanda, no aumento real do salário, na ampliação do crédito ao consumo popular e nos programas sociais. Ao mesmo tempo, vivemos um modelo de crescimento baseado na ampliação do consumo e na produção e exportação de commodities, com uma desindustrialização preocupante do País. O desafio é dar um passo adiante.
DINHEIRO – Esse modelo econômico não foi bom para o País?
UNGER – Esse ciclo está terminando. Não temos como avançar num ambiente de estagnação econômica intolerável. E há duas grandes reivindicações que vêm de baixo e definem a agenda do novo ciclo. A primeira é crescer. Só assim será possível assegurar a renda e o emprego. A segunda reivindicação é qualificar os serviços públicos, principalmente de educação, de saúde e de segurança. Milhões ascenderam a um novo padrão de consumo e encontraram uma trava na falta de serviços públicos de qualidade, sem os quais o consumo não basta para assegurar uma vida decente.
DINHEIRO – O estímulo ao consumo se mostrou uma fórmula eficaz nos últimos anos…
UNGER – Mas não funciona mais. Temos que ter uma estratégia que compreenda essa diferença fundamental, entre a democratização da demanda e a democratização da oferta. O que nós fizemos até agora foi democratizar a demanda. Isso permitiu um avanço social significativo. Funcionou durante um certo tempo. Temos que partir para outra fase, democratizando a oferta. Precisamos mudar o País, empurrados pela urgência da estagnação econômica e do esgotamento desse ciclo.
DINHEIRO – Qual é a melhor solução?
UNGER – Uma solução ruim para o governo e para o País seria se o segundo mandato da presidente Dilma descambasse para uma combinação de continuidade do ciclo anterior com a rendição ao mercado financeiro. Para evitar uma crise de confiança, render-se ao mercado e, com isso, criar mais espaço e mais tempo para a continuidade do ciclo anterior. Isso seria uma solução que, sob o pretexto de ser prudente, na verdade seria muito perigoso para o País. Seria afundar o Brasil em um pragmatismo antipragmático.
DINHEIRO – O sr. acredita que será possível fazer diferente, tendo um mesmo governo e as mesmas ideologias?
UNGER – Não acredito. O Brasil precisa romper as amarras do presidencialismo de coalizão monstrengo que temos hoje. E será preciso, sobretudo, inovar nas ideias e nas políticas públicas. O País precisa encontrar um outro caminho.
DINHEIRO – Qual é o caminho?
UNGER – Não é nada de mágico ou radical. Na questão do crescimento econômico, há um conjunto de medidas de médio e longo prazos que começam a desenhar um caminho. É fundamental um esforço concentrado para emergir uma parte da multidão de pequenas e médias empresas que são os agentes econômicos mais importantes do Brasil. Isso promoveria uma revolução econômica no Brasil. A grande maioria dessas empresas está sendo puxada para trás da vanguarda tecnológica.
DINHEIRO – E no curto prazo?
UNGER – A primeira ação é desonerar radicalmente o investimento e a exportação. A segunda é aprofundar o sacrifício fiscal, separando moeda e câmbio. Não podemos continuar tendo um câmbio como âncora monetária. O câmbio apreciado mata a produção. Mas só conseguiremos separar câmbio e moeda fazendo sacrifício fiscal. A terceira medida de curto prazo é negociar com as maiores empresas multinacionais. Temos muito poder de barganha, porque 300 das 400 maiores empresas do mundo estão estabelecidas no Brasil. As cadeias produtivas são cada vez mais organizadas globalmente, com componentes da produção alocados em diferentes países. Nós ocupamos um lugar subalterno nessas cadeias. Temos que mudar isso.
DINHEIRO – Um sacrifício fiscal não pode piorar ainda mais o cenário econômico?
UNGER – Não, se o governo reduzir gastos públicos que não sejam investimentos, cortar gastos operacionais e aprimorar a tributação. A tributação mais eficaz do ponto de vista econômico é a tributação pelo imposto geral pelo valor agregado, o IVA. É um imposto rejeitado pelas esquerdas porque é regressivo. Eles não compreendem que tudo o que se perde pelo lado de progressividade dos impostos se pode ganhar em dobro pelo lado do investimento.
DINHEIRO – O sacrifício fiscal não comprometeria os programas sociais?
UNGER – O governo precisa saber o que é, de fato, prioridade. Na política social, há um debate submerso, que defende que os programas sociais devem ser focados nos mais carentes. Essa linha sempre foi rejeitada nas sociedades mais igualitárias do Ocidente, que compreenderam que a solidez das políticas sociais depende da sua universalização. Enquanto os pobres forem tratados como pobres, vistos pelo governo como um público separado, a situação deles será sempre precária. Eles só vão subir na vida se houver uma onda das políticas sociais universalizantes. Nossas políticas sociais são frágeis, ineficazes e fáceis de desligar quando há um declínio econômico. Política social só funciona se for para todos.
DINHEIRO – Ao que parece, os programas sociais são prioridades para o governo.
UNGER – Será muito difícil manter os programas sociais sem crescimento econômico. Não é difícil apenas manter os avanços anteriores, de massificação do consumo e aumento da renda, mas sobretudo de qualificação dos serviços públicos. O governo insiste em duas visões de desenvolvimento e, às vezes, junta os dois. Mistura o ‘pobrismo’ com o ‘saopaulismo’. O ‘pobrismo’ é criar pequenos grupos de gente, de pescadores e cooperativas, todos recebendo bolsa do governo e sendo mantidos onde estão. O ‘saopaulismo’ é o fascínio pelas grandes siderurgias, refinarias e empresas que funcionam como enclaves que não mudam a sociedade.
DINHEIRO – Dilma afirmou que seu novo mandato será baseado no diálogo. Esse é o caminho para o início desse novo ciclo econômico?
UNGER – Promover o diálogo, por si só, é insuficiente. A tese dela é ‘vamos conversar’. Mas não sabemos o que será dito nessa conversa. Não existe proposta. Se não existe proposta, não há o que conversar. Não dá mais para ficar ouvindo dos empresários que a carga tributária é alta, que as empresas não conseguem competir, que a estrutura regulatória é onerosa e, no final da conversa, pedir uma ajudinha tributária, com isenção aqui ou acolá, ou um dinheirinho barato do BNDES. Daí o governo diz que não pode dar tudo, mas que vai liberar uma parte hoje e outra daqui a uns meses. Se for esse o diálogo, é uma conversa boba que não vai inaugurar um novo ciclo.
DINHEIRO – Mas o slogan da campanha foi “governo novo, ideias novas”
UNGER – Até agora não consegui enxergar nem governo novo nem ideias novas. Está tudo igual. Acho que há um genuíno desejo da presidente Dilma e sua equipe de encontrar um novo caminho. O governo, a meu ver, ainda não tem ideia. Um projeto para o País não pode ser uma solução mágica que alguém tira do bolso. Deve ser, sempre, uma construção coletiva, lapidada pelo debate.
DINHEIRO – Existe a expectativa da elaboração de uma nova política industrial.
UNGER – A nossa política industrial, sem anestesia, baseia-se em uma política de tirar dinheiro de trabalhador e dar para o BNDES, que depois financia 20 grandes empresas bem relacionadas com o governo brasileiro. Enquanto isso, uma multidão de pequenos empreendedores fica lá trás sem nada. Isso é um absurdo. Esse modelo foi conduzido sob o pretexto de seguir um discurso francês, de criar empresas campeãs mundiais, mas que resultou em uma prática da antiga Coreia do Sul, na qual existem acertos não muito transparentes entre o Estado e determinadas empresas.
DINHEIRO – Os defensores do governo afirmam que esse modelo tem ajudado a economia brasileira nos últimos anos, inclusive fortalecendo o País diante da crise internacional…
UNGER – Há um descontentamento entre azuis e vermelhos. É consenso que ainda não se criaram no Brasil as condições para uma vida decente para a maioria. Ninguém pode dizer que isso é esquerda ou direita. Isso é um produtivismo includente inteiramente factível. A imprensa está cheia de discussão sobre quem será o novo ministro da Fazenda, mas praticamente não se discute o conteúdo de uma alternativa capaz de alçar o crescimento. Como se fosse possível substituir um modelo econômico apenas nos rendendo ao mercado. É o mesmo que assumir que não temos projeto, mas vamos fazer um agrado ao mercado financeiro colocando um deles lá. O agrado não substitui projeto. Não vai funcionar. Se houver uma nova estratégia do governo, o ministro da Fazenda pode ser qualquer um.
DINHEIRO – A transformação do Brasil está, afinal, em qual caminho?
UNGER – Na educação. Teremos que construir aquilo que chamamos de ‘pós-fordismo’. A ideia é não transformar o Brasil primeiro em uma São Paulo de meados do século passado para depois virar outra coisa. Temos que escapar do purgatório da industrialização a qualquer custo e organizar uma travessia direta para o ‘pós-fordismo’. Para isso é preciso instrumentalizar nossa multidão empreendedora.
DINHEIRO – Esse discurso já não está batido?
UNGER – O modelo é outro. Temos de criar as capacitações necessárias para viabilizar o crescimento. Isso começa no ensino médio. Precisamos de uma escola que combine o ensino geral com o ensino prático. Tem de ser um ensino analítico, não um ensino de decoreba ou um enciclopedismo. O ensino prático, em vez de seguir o antigo modelo alemão de ensinar como ser bombeiro, eletricista ou mecânico, tem de oferecer capacitações genéricas necessárias ao manejo das novas tecnologias.