A economista carioca Monica de Bolle desembarcou nos Estados Unidos, em outubro do ano passado, para um período de estudos no Peterson Institute for International Economics, que vem a ser o berço das recomendações liberais conhecidas por Consenso de Washington. Filha do falecido economista Alfredo Luiz Baumgarten, Monica é fascinada pela discussão de ideias. O melhor exemplo desse interesse foi a tradução, para o português, do livro “O Capital no Século XXI”, do francês Thomas Piketty. “Uma das razões para traduzir esse livro é que sempre senti no Brasil, sobretudo nos últimos tempos, uma falta de debate. Hoje é tudo certo ou errado, este ou aquele lado”, diz ela. “O livro é um trabalho fabuloso, mas nem todas as teses que estão expostas são corretas.” É com esse espírito provocador que a economista conversou com a DINHEIRO.

DINHEIRO – Qual é a imagem atual do Brasil nos Estados Unidos?
MONICA DE BOLLE – 
Existem dois tipos, o de pessoas perplexas e o das que acham difícil de acreditar. Estes últimos são os que não acompanharam tão de perto o período recente e não viram como o Brasil foi desmontado pela má gestão econômica dos últimos quatro anos. Por isso, eles olham e não compreendem esse crescimento próximo de zero, num mundo que está claramente caminhando para uma outra discussão, inclusive nos EUA, sobre estagnação, riscos de deflação e taxas de juros reais negativas. Já os perplexos sabiam que a situação era ruim e que o Brasil caminhava para chegar onde está agora. O problema é que eles estão mais perplexos com o quadro político do que com o econômico. Como sabiam que a queda das commodities e a desaceleração da China, somadas a outras conjunções negativas, desarrumariam a economia brasileira, eles se surpreendem com a crise política e, principalmente, com a corrupção. Claro, corrupção existe em qualquer parte do mundo, nenhum país está isento. Mas o caso da Petrobras ficou muito marcado, pelas evidências e pela investigação.

DINHEIRO – Há alguma preocupação com relação à ingovernabilidade do País?
MONICA –
 A sensação é de hesitação com a crise política, que estourou rapidamente e de uma forma muito grave. Confesso não ter lembrança de ter visto nada parecido. No fim dos anos 1980, o quadro político era complicado, mas o problema econômico se sobrepunha ao político. Não existia essa situação de ingovernabilidade que se vê hoje. Mas creio que a situação está evoluindo e mudando muito rapidamente. A decisão da presidente Dilma Rousseff de colocar o vice-presidente Michel Temer como o principal articulador político é algo que pode destravar essa paralisia que tomou conta do centro do governo e do Congresso.

DINHEIRO – Não há receio de que o PMDB tenha se transformado no comandante dos Três Poderes e que o PT, o partido da presidente eleita, virado um coadjuvante?
MONICA –
 Mas é o velho comandante de sempre. Nesse aspecto, o País voltou no tempo. O PMDB herdou a primeira eleição democrática, após o impeachment de Fernando Collor. Agora, temos mais um processo complicado de transição e o PMDB novamente ocupa esse vácuo, porque o partido que vai completar 16 anos no poder praticamente implodiu. A conclusão é que o PMDB sempre foi, continua sendo e nunca deixará de ser o partido mais forte do Brasil, o partido que tem a maior capilaridade regional, o que consegue mobilizar todos os lados, de uma forma muito mais organizada do que o PT, e ainda mais do que o PSDB.

DINHEIRO – Com isso, a senhora enxerga um abafamento da crise política?
MONICA –
 Com o Temer como articulador político é possível vislumbrar alguma chance de governabilidade, o que é bom para o Brasil. As pessoas que não votaram na Dilma podem não ficar satisfeitas, mas o processo democrático é esse. Ela foi eleita. Esse arranjo com o PMDB permite que ela complete os quatro anos da melhor forma possível, porque a popularidade da presidente não vai melhorar. Como ela conseguiria governar o País e levar adiante tudo o que precisa ser feito, como o ajuste fiscal e o restante da agenda de reformas, com 10% de aprovação? Estamos no início de um processo de deterioração que tem muitos problemas pela frente antes de começar a pensar num retorno do crescimento, numa redução mais sistemática da inflação. Ainda estamos em pleno processo de inflação, haja vista os números horrorosos que saíram sobre o desemprego. A crise institucional era uma situação insustentável.

DINHEIRO – Esse cenário mostra uma crise econômica mais longa do que dois anos?
MONICA – 
Nos últimos quatro anos, houve uma desconstrução do Brasil e a reconstrução é positiva. Antes de falar mal da matriz econômica do ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, já existia uma discussão sobre como a economia brasileira iria crescer quando o ciclo de commodities viesse abaixo e a China começasse a desacelerar. A dúvida continua presente. O esforço que o ministro Joaquim Levy está fazendo para consertar todos esses desequilíbrios, que foram acentuados no primeiro mandato de Dilma, é importante, mas não é a única saída. É preciso resgatar a infraestrutura, melhorar a educação, o ambiente de negócios e reduzir todos os entraves das empresas para aliviar a situação delas e aumentar a capacidade de investimento. Há um excesso de otimismo sobre a capacidade de reação da economia brasileira com essas reformas, uma vez que elas sejam implantadas. Mas não vai ser um processo rápido.

DINHEIRO – Qual é a medida mais urgente a ser adotada?
MONICA –
 O processo de abertura comercial da economia brasileira. Não entendo porque não se discute seriamente esse tema. Qualquer política industrial que se queira fazer para melhorar a situação da indústria passa pela abertura comercial. A indústria é global, não local. Só no Brasil a indústria nacional é voltada apenas para o mercado doméstico. Indústria, hoje, são as cadeias globais de valor, são empresas inseridas nesses processos produtivos, que circulam no mundo inteiro. Para se inserir nisso é necessário mudar a postura do País com relação ao comércio.

DINHEIRO – A lei do conteúdo local é um erro?
MONICA – 
Foi a pior decisão do governo Dilma. Honestamente, não consigo encontrar um argumento a favor do conteúdo local. Uma empresa que precisa comprar internamente uma parte dos seus insumos paga muito mais caro para produzir. É um ciclo perverso, porque custa caro e a empresa refaz os seus planos de investimento. Levando em conta todos os aspectos de abertura comercial, é preciso facilitar a entrada de empresas no Brasil e permitir que elas desfrutem do mercado doméstico. É uma anomalia brasileira ter empresas multinacionais que não usam o país como base para exportação e, basicamente, só produzem para o mercado doméstico. Em outros países emergentes as multinacionais atendem localmente e o exterior. Nos EUA, o governo Obama está buscando cada vez mais deixar um legado na área de abertura comercial. É a único ponto que existe acordo entre Democratas e Republicanos, daí a busca pelo acordo Transpacífico e a tentativa de um acordo com a Europa. Com o Brasil, eles têm muita vontade de sentar, conversar e pensar em formas de engajamento mútuo.

DINHEIRO – O encontro entre os presidentes Dilma e Obama, na Cúpula das Américas, no Panamá, pode ser um primeiro passo? 
MONICA –
 Os sinais que vêm dos EUA e, com menos intensidade, do Brasil, são positivos, no sentido de ter um processo de negociação mais sério. Mas é preciso andar mais rapidamente. Essa deveria ser a agenda prioritária do governo e caminhar ao lado do ajuste fiscal.

DINHEIRO – Até aqui, o trabalho do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, pode ser considerado satisfatório?
MONICA –
 Levy pegou o ministério da Fazenda numa situação complexa, difícil e inimaginavelmente intrincada. Está sendo um grande desafio e, até agora, ele tem se mostrado a altura de atacar os problemas. De vez em quando fala algumas coisas fora de contexto ou fala uma outra coisa fora de hora. Numa situação normal, o escrutínio seria enorme. No caso dele, a atenção é maior por ele representar a salvação. Mas, com a economia mal e com a perspectiva de piorar nos próximos meses, fazer esse ajuste fiscal, na magnitude que o ministro anunciou, vai ser difícil. Sou cética sobre a capacidade de chegar na meta cheia de superávit primário, no fim deste ano. É difícil alcançar 1,2% do PIB. Ficou ambicioso demais. Mas, como as pessoas sabem que o desafio ficou muito maior do que quando foi anunciada originalmente, há uma enorme boa vontade, tanto do investidor internacional como das agências de risco, para entender que o Levy vai fazer o melhor possível. Se ele entregar uma meta de superávit aquém do 1,2% do PIB, desde que tenha demonstrado que as contas públicas tomaram outro rumo, todos acharão que o resultado é bom.

DINHEIRO – Quando de fala de metas irrealistas, a inflação é um caso interessante. Chegou a 8,1%, no acumulado de 12 meses, e há bastante tempo está longe da meta de 4,5%. Não seria mais transparente rever esses objetivos?
MONICA – 
Tudo ficaria um pouco mais transparente se fosse dito: “Esqueçam o que aconteceu nos últimos quatro anos, quando não cumprimos a meta”. No início do governo Dilma, em especial em 2011 e 12, quando o cenário internacional estava muito incerto, o Banco Central (BC) foi cauteloso e é difícil dizer que estava agindo equivocadamente porque os riscos externos eram grandes. Depois o cenário mudou, mas o BC continuou batendo na tecla da crise internacional, que tinha acabado. Ali desmoronou boa parte da credibilidade do BC, porque não houve transparência. Mas 2015 é um ano de transição. O ideal era reconhecer que a meta de inflação não vai fechar o ano nem perto do teto de 6,5%. Ser transparente em relação a isso vai ajudar no resgate da credibilidade do BC. E, no fim das contas, isso é extremamente importante para o regime de metas funcionar bem.

DINHEIRO – O presidente do BC, Alexandre Tombini, ficou mais tranquilo com a presença do Levy na Fazenda?
MONICA – 
Ele está numa situação mais tranquila porque o Levy vai trabalhar com ele, para ajudá-lo, e não para atrapalhá-lo, como fazia o ex-ministro Mantega. Então, nesse aspecto, ajuda. Porém, a convergência da inflação para 4,5%, em 2016, é um problema. Isso é uma expectativa irrealista. Como o País vai chegar em 4,5% no ano que vem? A não ser que tenhamos uma recessão muito forte neste ano, que se prolongue em 2016. O que não podemos esquecer, no caso do Brasil, é que temos indexação oficial, além de muita indexação informal. Então o grau de inércia da inflação no Brasil é altíssimo. A inflação não cai apenas com o esforço do BC.

DINHEIRO – Qual é a chance de o Brasil perder o grau de investimento?
MONICA –
 Hoje é muito pequena. Certamente, neste ano esse risco não existe. Possivelmente ele retorna no ano que vem, mas eu não estou pessimista. Apesar de todas as dificuldades que o País está atravessando agora, não tem motivo nenhum para perder o grau de investimento. Tendo essa racionalidade na política econômica, com o trabalho que o Levy está fazendo, e se houver continuidade desses esforços, com as reformas saindo do papel e o início de um rumo mais claro, não tem o por quê perder o grau de investimento.