O primeiro fim de semana de maio foi de comemoração antecipada para o embaixador Ruy Pereira, coordenador do grupo de apoio à campanha para eleger o diplomata baiano Roberto Azevêdo ao cargo de diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Pereira já contabilizava quase 100 confirmações na planilha onde anotava os votos declarados pelos governos que havia consultado. Era preciso ter o voto de pelo menos 80 dos 159 países-membros da entidade responsável por balizar o comércio internacional. Na reta final de uma campanha que começou no dia 7 de janeiro, houve intensa movimentação no Palácio do Itamaraty, a sede do Ministério das Relações Exteriores, em Brasília. 

 

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Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC: ”Precisamos ampliar a agenda,

com regras novas que acompanhem o mundo dos negócios”

 

O chanceler Antônio Patriota fez 24 ligações para colegas de outros países. Até a presidenta Dilma Rousseff reforçou alguns pedidos, incluindo uma ligação ao presidente francês, François Hollande. Na segunda-feira à noite, com a certeza da vitória, mas ainda temendo uma reviravolta, Pereira lançou mão de um último recurso: prometeu que cortaria o bigode, caso Azevêdo fosse escolhido. Dito e feito: na quarta-feira 8, um dia depois da confirmação da vitória de seu compatriota, Pereira atendeu o telefonema do novo diretor-geral da OMC, sentado na cadeira de um barbeiro. A eleição do embaixador Azevêdo é fruto da mais bem-sucedida campanha já empreendida pelo governo brasileiro, que já conseguira emplacar o engenheiro agrônomo paulista José Graziano da Silva no comando da FAO, em 2011. 

 

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O mexicano hermínio blanco perdeu, apesar do apoio da Europa e dos Estados Unidos

 

No total, Dilma, Patriota e outros ministros, como o do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, e o da Fazenda, Guido Mantega, enviaram 571 cartas pedindo ou agradecendo o apoio a Azevêdo. Apesar da campanha pesada e do significado do resultado – é o mais alto cargo internacional já ocupado por um brasileiro –, a presidenta Dilma tratou o assunto com modéstia. “Não é uma vitória do Brasil nem de um grupo de países, mas da OMC”, afirmou, em nota oficial. Fernando Pimentel seguiu a orientação para não cantar vitória e não alimentar a sensação de que o País elegeu um papa ou ganhou a copa do mundo do comércio internacional. “Engana-se quem pensa que a vitória de Azevêdo facilitará a vida do Brasil no intrincado cenário do comércio internacional”, diz o ministro. “Não foi para defender o nosso país que o diplomata se candidatou ao cargo mais alto da OMC.”

 

NEGOCIAÇÕES Nascido em Salvador há 55 anos, Azevêdo é formado em engenharia pela Universidade de Brasília (UnB). Diplomata desde 1984, é uma das pessoas que mais conhecem as regras e os meandros da entidade que irá comandar. Ele chefiou a missão brasileira junto à OMC, em Genebra, entre 2008 e janeiro deste ano, quando começou a campanha que o levou a visitar mais de 40 países. No Itamaraty, foi responsável pelos contenciosos do País na OMC em 2001 (leia quadro) e dirigiu o Departamento de Economia em 2005. Elogiado por seus pares pela capacidade de brigar por suas posições sem desagradar ao adversário, o novo diretor-geral promete revitalizar a OMC. 

 

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“Precisamos ampliar a agenda, com regras novas que acompanhem o mundo dos negócios”, afirmou, tão logo foi confirmada sua indicação. “A OMC está em um estágio muito crítico. As negociações estão completamente paradas.” Os países em desenvolvimento votaram em peso no brasileiro, refletindo a mudança do eixo da economia mundial, que vem ocorrendo desde 2005, quando seu antecessor, o francês Pascal Lamy, foi eleito. As nações emergentes representam metade do comércio global e precisam ser mais bem representadas. O Brasil teve o apoio decisivo da China, maior exportadora global, e Azevêdo deverá retribuir a gentileza nomeando um chinês como um dos quatro vice-diretores-gerais da entidade. 

 

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Reguladora do comércio: com sede em Genebra, na Suíça, a OMC precisa recuperar a relevância

 

Os países desenvolvidos tentarão manter sua influência, após perderem a direção da OMC para um líder dos emergentes. A União Europeia descarregou seus 27 votos no mexicano Hermínio Blanco, que concorreu com Azevêdo. Já os Estados Unidos, apesar do apoio ao mexicano, informaram que aceitariam qualquer resultado da eleição. Nenhum país vetou o nome do vencedor, embora a França, a Suécia e a Grã Bretanha tenham jogado pesado contra Azevêdo, o que poderá provocar retaliações do governo Dilma. Nesse caso, ponto para a diplomacia do presidente Barack Obama, que sai fortalecida no jogo de pressões para a venda dos caças F-18 da Boeing, que competem com os Rafale, da francesa Dassault, e com os Gripen, da Saab, na concorrência para o aparelhamento da Força Aérea Brasileira. 

 

A questão agora é saber até que ponto um brasileiro na direção da OMC pode favorecer seu país natal. Nos últimos meses, medidas como os incentivos à indústria local de automóveis foram muito criticadas pelos países ricos, que enxergaram aí manobras protecionistas. Azevêdo rebateu as críticas. “O protecionismo é generalizado e está se alastrando”, diz ele. “Da mesma maneira que há reclamações contra o Brasil, há acusações contra uma quantidade imensa de países.” Enquanto se defende, o País tenta pôr em discussão a chamada “guerra cambial”, medidas como a desvalorização artificial da moeda chinesa ou o afrouxamento monetário nos Estados Unidos, que prejudicam seus competidores internacionais. 

 

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“Azevêdo vai colocar a guerra cambial em pauta na OMC, porque ele acredita nisso”, diz Roberto Giannetti da Fonseca, diretor do Departamento de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Ao assumir o cargo, em setembro, o diplomata brasileiro terá o poder de conduzir a agenda e as discussões entre os países-membros. Mas terá a árdua tarefa de encontrar consenso. “Ele não representa mais o Brasil, mas o mundo”, diz o economista Gary Hufbauer, pesquisador do Instituto de Economia Internacional, em Washington. Ou seja, se antes defendia a posição brasileira, agora terá de contar com a concordância de todos os membros. 

 

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Ainda assim, é inegável que a sua bagagem para o cargo tem conteúdo nacional. “Azevêdo não decide, mas pode ajudar a persuadir”, diz Hufbauer. É com isso que contam os empresários brasileiros. Hábil negociador e muito respeitado em Genebra, o novo diretor-geral da OMC tem as características necessárias para tentar ressuscitar a Rodada Doha, lançada em 2001, que empacou. Não houve acordo sobre quanto cada país deveria ceder num processo de abertura. Com o fiasco, proliferaram os acordos bilaterais e regionais, que ajudam a driblar a falta de uma legislação comum aos 159 membros da OMC, para reduzir barreiras comerciais. Estima-se que haja entre 200 e 300 acordos de livre comércio.

 

O Brasil, entusiasta do multilateralismo, investiu pouco nessa política de acordos e hoje mantém apenas 18 em vigor. O México, por exemplo, tem 44. Na avaliação de Giannetti da Fonseca, foi um erro apostar todas as fichas em Doha, sem buscar alternativas. “Nós ficamos presos ao Mercosul, que tornou impossível a tarefa de negociar com qualquer outro país ou grupo”, afirma. Como ele, outros representantes do setor privado viram a escolha do diplomata com entusiasmo. “A OMC vai ganhar com a presença de uma pessoa com personalidade de tamanha relevância”, diz Murilo Ferreira, presidente da Vale, maior exportadora brasileira. A opinião é compartilhada pela Embraer, líder nas exportações do setor industrial. 

 

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O algodão da discórdia: o Brasil venceu os americanos na OMC (na foto, produção na Bahia)

 

“A experiência e a competência dele ajudarão a entidade na defesa da transparência e do respeito às regras multilaterais de comércio e na retomada das negociações no âmbito da Rodada Doha”, afirma Jackson Schneider, vice-presidente-executivo da Embraer. Os produtores de algodão, beneficiados com a solução de um contencioso, conduzido por Azevêdo quando ainda estava no Itamaraty, acreditam que o novo diretor-geral da OMC vai contribuir garantindo maior respeito às regras. “Ele conhece muito de contencioso agrícola e será muito importante para os países em desenvolvimento”, afirmou Gilson Pinesso, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa). 

 

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O processo do algodão, que resultou num fundo financiado pelos americanos para compensar os produtores brasileiros, foi importante para obter o apoio da África na eleição da semana passada. Mas nem todo mundo acredita que a presença do brasileiro possa destravar as negociações de Doha. José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), diz que a chance é pequena. “Para estimular o crescimento do comércio mundial, ele vai ter de sair da posição defensiva e partir para a ofensiva”, afirma. No ano passado, as transações cresceram acompanhando o ritmo do PIB mundial – antes cresciam bem acima – e neste ano o volume de transações pode até cair em relação ao anterior. 

 

Para o embaixador Rubens Barbosa, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, a dificuldade em concluir a negociação acabou reduzindo o papel da OMC. “Hoje, a instituição está limitada à solução de controvérsias e tem perdido espaço na facilitação comercial”, diz Barbosa O prestígio do novo diretor-geral da OMC será testado ainda neste ano, durante a reunião ministerial de Bali, na Indonésia, em dezembro. Azevêdo tentará concluir a Rodada Doha, mesmo que obtendo um acordo parcial, para depois relançar outros temas. “Não é mais questão de obter o que queremos, mas de salvar o que temos”, disse ele.

 

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