11/11/2016 - 17:00
Exatos 27 anos separam a eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, na última semana, e a queda do muro de Berlim, em 1989. E há mais do que a data de 9 de novembro entre as coincidências de ambos os eventos. Na eleição de Trump, mais uma vez, um muro volta a figurar como símbolo do que pode vir a ser uma revisão geopolítica global, como fora o ato alemão que pavimentou o caminho para um redesenho do mundo. O magnata venceu prometendo montar uma barreira na divisa com o México para frear o ímpeto migratório vizinho.
Sob diversos aspectos, um bloqueio de mais de 3.000 quilômetros na fronteira é considerado improvável, mas não deixa de servir como uma metáfora do risco que o presidente eleito oferece aos rumos da economia global. Pelas promessas de campanha, a ordem é barrar produtos estrangeiros e rever o arcabouço institucional que permitiu incrementar as trocas de mercadorias e serviços nas últimas décadas. É cedo para dizer em que medida o Trump eleito seguirá o Trump da campanha. Como bem definiu o ministro das Relações Exteriores, José Serra: “Treino é treino, jogo é jogo”, afirmou na quarta-feira 9. “O treino é a campanha, o jogo começa agora.”
O mais provável seria o novo líder adotar uma postura pragmática e abandonar ataques feitos na corrida às urnas. Mas o imponderável causa medo. Na disputa, o bilionário se mostrou um isolacionista. Culpou a globalização pela perda de empregos na indústria, rechaçou acordos comerciais, acusou a China de manipular o câmbio e cobrou um débito do mundo com os americanos. Em discursos, prometeu taxar em mais de 30% produtos chineses e mexicanos, descartou levar adiante as negociações sobre o megacordo transpacífico (TPP, na sigla em inglês) e ameaçou deixar organismos multilaterais. “A Organização Mundial de Comércio (OMC) é um desastre”, afirmou na época.
Trump já é resultado de um mundo em mutação, um subproduto da crise de 2008, que deixou feridas abertas em diversos países e prenuncia uma nova ordem econômica mundial, mais nacionalista do que globalizante. Em junho, os britânicos surpreenderam ao decidir, em referendo, abandonar a União Europeia. No chamado Brexit, também pesaram a frustração com a integração e o sentimento de que é melhor caminhar sozinho do que em bloco. A vitória do isolacionista americano agora fortalece líderes da mesma linha, em especial na Europa, onde o vigor econômico esmaece.
Na França, Marine Le Pen, da ultradireita, aparece como próxima postulante da lista, no pleito que acontecerá em 2017. A candidata é contra a imigração e promete realizar um referendo para deixar a União Europeia. “No mundo pós-2008, todas as sabedorias convencionais precisam ser desafiadas e submetidas ao processo de pensar o impensável, como o Brexit”, diz Jean-Pierre Lehmann, professor de economia da escola de negócios suíça IMD. “Vivemos um período muito turbulento, caracterizado por choques e incertezas.”
Se a ascensão de Trump mostra que o impensável já é realidade, mais difícil é imaginar como se organizaria o mundo nesse novo cenário. “O ordenamento como conhecemos está sendo questionado”, afirma Matias Spektor, professor de relações internacionais da FGV. “Não há ainda um modelo novo, mas se não houver uma resposta boa, em algum momento vai surgir.” Na linha protecionista, não se descartam um arrefecimento global do comércio e a evolução para uma guerra comercial, onde todos tentariam adotar barreiras a produtos estrangeiros.
Apenas a sobretaxa de produtos mexicanos e chineses, que representam, juntos, 25% das trocas comerciais dos Estados Unidos, poderia levar o País à recessão em 2019, de acordo com estimativas do Peterson Institute of International Economics. Cálculos da consultoria de risco Coface indicam que os efeitos não ficariam restritos aos americanos. Se levado adiante, o protecionismo de Trump e dos britânicos reduziria em até dois pontos percentuais o PIB de algumas economias europeias nos próximos anos. Nos EUA, bens ficariam mais caros e forçariam novas altas de juros, com impactos negativos por todo mundo.
Para a maior parte dos economistas, a linha radical de Trump no comércio traria como único resultado mais pobreza no geral. “Caso as fronteiras fossem fechadas ao comércio, o poder aquisitivo dos mais ricos nas economias avançadas seria reduzido em cerca de 30%”, afirmou à DINHEIRO o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo (leia entrevista aqui). “Já os mais pobres veriam seu poder de compra reduzido em 60%.” Pesa contra propostas como a ameaça de sobretaxar as mercadorias que vêm da China o fato de que um em cada cinco dólares exportados pelos chineses hoje é fruto de empresas americanas.
“Não haverá meio termo: ou o Trump vai para uma posição mais pragmática, honrando a tradição de livre-comércio, ou simplesmente faz um copiar e colar das ideias de campanha, prejudicando a economia global e sobretudo o balanço das empresas americanas”, diz Marcos Troyjo, do BricLab, da Universidade Columbia. Nos cenários traçados pelo diplomata, chama atenção um em que os americanos sairiam como maiores perdedores, com o espaço comercial sendo ocupado por outros competidores. A geopolítica prometida por Trump sugere uma recalibragem do papel global dos Estados Unidos.
Surge a perspectiva de uma aproximação com parceiros improváveis, com a Rússia, liderada por Vladmir Putin, e o risco de retirada de bases militares pelo mundo. A ascensão do novo líder é uma ameaça sobretudo para instituições multilaterais. No campo econômico, a dúvida é até que ponto poderiam gerar um esvaziamento de entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, além da OMC. “Há uma ordem mundial estabelecida, mas as pessoas estão preocupadas”, afirma a economista Monica de Bolle, do Peterson Institute for Internacional Economics. “Seria complicado desmantelar todo o sistema de Bretton Woods.”
A cidade de Bretton Woods, nos Estados Unidos, foi palco da conferência que debateu, em 1944, as bases para a reconstrução do capitalismo e um sistema de regras para regular a política econômica internacional, cujo objetivo era primar pelo mercado e o livre fluxo de comércio e capitais. Dali surgiram o FMI, o Banco Mundial e a visão que permitiu aprofundar o ritmo de crescimento após a depressão de 1929. Por efeitos como a vitória de Trump, o Brexit e a insurgência militar na Turquia, 2016 está sendo considerado por analistas o ano mais instável desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Com a surpresa nas urnas americanas, o mundo aguarda agora indícios sobre a posição a ser tomada pelo novo líder. “O protecionismo vai crescer sob Trump”, afirma David Kohl, economista-chefe do banco Julius Baer na Alemanha. “Perderemos a oportunidade de acelerar o crescimento.” Para dentro de casa, o cenário parece um pouco mais claro. O roteiro seguirá os passos da cartilha tradicional republicana, com planos para reduzir impostos dos mais ricos e de empresas. Trump também pretende criar um programa de infraestrutura, com investimento público.
Enquanto ainda são necessários mais detalhes para saber os efeitos que poderiam gerar sobre o PIB americano, economistas enxergam riscos sobre o nível de endividamento. Com o Congresso majoritariamente republicano, haveria menor resistência para aprovar ampliação de gastos. Já para a maior parte das propostas mais radicais de Trump, a aposta global é de que o sistema de pesos e contrapesos da democracia dos Estados Unidos possa colocar um freio no estilo doidivanas do bilionário. Ou que simplesmente entre em cena um exame de consciência pragmático de negociador, para questões como o protecionismo. “O discurso antiglobalização nem faz sentido para algúem que construiu campos de golfe por todo mundo”, afirma de Bolle.
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“Com fronteiras fechadas, mais pobres perderiam 60% do poder de compra”
Diante da crescente onda antiglobalização, o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), Roberto Azevêdo, alerta para o risco de adoção de novas barreiras comerciais. Confira a entrevista concedida à DINHEIRO, por e-mail, após a eleição de Donald Trump.
Potências econômicas enfrentam uma onda de protecionismo. Como isso pode prejudicar o comércio internacional?
O ritmo de introdução de barreiras ao comércio por países do G20 segue relativamente estável desde 2008. O comércio mundial atingido por essas medidas é relativamente pequeno, entre 5% e 6%. Após a crise dos anos 1930, dois terços do comércio mundial desapareceu. Assim, estamos vivendo hoje um momento difícil, mas não catastrófico. No entanto, o ambiente político é desafiador: o aumento do desemprego e o crescimento econômico baixo aumentam a pressão sobre o comércio. Lidar com esses desafios restringindo o comércio apenas agravará a situação econômica. Seria o remédio errado porque a causa do problema não é o comércio, mas sobretudo as mudanças estruturais geradas no mercado de trabalho pela introdução de novas tecnologias.
O sr. acredita que as relações comerciais estão passando por uma transformação?
As negociações multilaterais precisam ser flexíveis para levar em conta as preocupações, os interesses e os diferentes momentos políticos dos países. Foi com essa maior flexibilidade que conseguimos fechar o Acordo de Facilitação de Comércio, envolvendo cerca de 160 países. Precisamos fazer o comércio mais inclusivo. É importante, por exemplo, que as pequenas empresas possam se beneficiar mais de oportunidades em outros mercados. O modelo multilateral tem muito a contribuir nesse sentido. As negociações regionais e bilaterais poderiam ajudar e complementar esse esforço, mas mesmo essa via tem se mostrado especialmente difícil.
Fatos como a vitória de Donald Trump e o Brexit reforçaram a tese de desglobalização. Como isso pode afetar o comércio global?
Incertezas econômicas e desemprego têm alimentado um sentimento antiglobalização. Isso não quer dizer que a globalização parou, ou mesmo que possa ser parada. É a forma de lidar com ela que está em debate. Esses desafios não se resolvem com menos comércio. Ao contrário, restrições ao comércio tendem a agravar o quadro econômico. Mais barreiras ao comércio levam a produtos e serviços mais caros. Caso as fronteiras fossem fechadas, o poder aquisitivo dos mais ricos nas economias avançadas seria reduzido em cerca de 30%. Já os mais pobres veriam seu poder de compra reduzido em 60%. A instabilidade no mercado de trabalho não é provocada pelas importações, responsáveis por apenas 2 entre 10 vagas perdidas nos países desenvolvidos. Os outros 8 desaparecem por causa da automação ou novos métodos de produção. O desafio é adotar os remédios adequados para lidar com essa mudança. Ainda mais preocupante é o fato de que o sentimento antiglobalização vem frequentemente associado à rejeição de tudo que vem de fora, com altas doses de intolerância. A história nos mostra que esses sentimentos são perigosos e podem escalar com facilidade, sobretudo em momentos de desaceleração ou depressão econômica.
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