João Luiz Mascolo personifica aquilo que poucos especialistas em economia exercem: a autonomia intelectual. Diz o que pensa sobre tudo. Seja em relação à responsabilidade fiscal, à incapacidade de se pensar o potencial de estrago inflacionário à vista, ao risco de um endividamento sem controle e à necessidade de o governo ter a coragem de fazer o que é decisivo para a economia do Brasil voltar a ter tração: uma reforma administrativa que corte gastos. Fundador da Macro Consultoria e professor há mais de duas décadas do Insper, ele entende que financiar o déficit por meio de dívida não é uma saída infinita. “Comparar nosso mercado de títulos com o dos Estados Unidos é de uma burrice fantástica.”

Começamos pela grande questão nacional: haverá ou não responsabilidade fiscal?
João Mascolo — Tenho uma primeira impressão incerta, algo que não está claro para ninguém: qual é a verdadeira visão do presidente eleito sobre essa questão.

Por quê?
Porque nos debates e nas entrevistas ele se vangloriava de ter feito superávit primário em todos os anos dos governos dele. O que é verdade, né? Mas essa mesma pessoa, um pouco depois de eleito, faz discurso fazendo chacota do conceito de responsabilidade fiscal. Em qual versão devo acreditar?

Mas os dois primeiros mandatos de Lula foram cartesianos a esse respeito, não?
Sim, a amostra que eu tenho são os oito anos de governo dele. É nisso que me baseio quando opino. Assim como o governo Dilma [Rousseff] foi outra coisa, foi uma tragédia. Então qual é o Lula? O que falou de responsabilidade fiscal ou aquele do discurso da chacota?

E a economia se baseia na previsibilidade…
Essa incerteza sobre o pensamento a respeito da responsabilidade fiscal é o número 1. E leva ao ponto número 2, de que também não gosto, que é essa postura que ele assume de monopolista das virtudes. Governar é fazer opções políticas, e ele tem o direito de fazer as opções que quiser. Agora, o que ele não pode esquecer, e parece que está esquecendo, é que o governo tem forte restrição orçamentária.

Não há espaço para o pacote de benesses?
Não é só ter boas intenções e sair fazendo. Ele pode ter milhões de boas intenções, mas agora terá de obedecer a questão orçamentária, a exemplo de qualquer empresa, qualquer família. Como falta dinheiro, veio com esse pedido de waiver por dois anos [e virou um], de R$ 168 bilhões, num texto que inclui outra coisa que não dá para entender: são R$ 145 bilhões fora do teto e R$ 23 bilhões que chamam de receita extraordinária. Ora, extraordinária em relação a quê? Em relação à previsão. Então não se pode gastar isso. País que tem déficit pode considerar excesso de caixa como receita extraordinária e gastar? Não, né?

“A Teoria Monetária Moderna é uma baboseira. Se fosse como eles dizem não haveria mais país pobre. Era só sair gastando e acabou a pobreza” (Crédito:Miro May / picture alliance / dpa Picture-Alliance via AFP)

No entanto, a PEC é realidade. Seja via Congresso, seja via Justiça. Na noite de domingo (18), Gilmar Mendes (STF) decidiu de forma provisória (liminar) que o dinheiro para pagar o Bolsa Família deve ficar fora do teto. Qual o reflexo?
Não se briga com os números. Há um déficit. Então não adianta dizer que vai gastar com isso e aquilo. Para a discussão ficar completa, é preciso dizer de onde vai se financiar o buraco. Ou é isso ou é mudar a composição de gastos. Mas ninguém fala nada sobre a recomposição de gastos. E tem mais. No texto da PEC vi um diagnóstico que me assustou, e sei até de onde ele veio [referindo-se a economistas considerados desenvolvimentistas/dirigistas]. Diz lá que é preciso fazer gastos públicos sem aumentar impostos, que esses gastos públicos vão elevar o crescimento, gerar arrecadação e aí não vai ter déficit. Ou seja, é de um keynesianismo primitivo. Pensei que esse pensamento estivesse enterrado. Algo assim meio anos 1950…

Que agora surge sob o conceito de Teoria Monetária Moderna (MMT).
A Teoria Monetária Moderna é uma baboseira. Acho muito perigoso que ainda tenha gente lá [no novo time econômico] escrevendo isso. Se fosse como eles dizem não haveria mais país pobre no mundo. Era só sair gastando e acabou a pobreza.

Ter uma equipe diversa pensando a estratégia econômica, com Nelson Barbosa de um lado, Pérsio Arida e André Lara Resende de outro, não levaria a uma solução mais completa?
Qual é a regra fiscal na cabeça deles? Porque os economistas que estão lá… O pessoal da Unicamp, o André… Ele foi meu colega de mestrado na FGV no Rio, em 1974. Tivemos formação semelhante, bem ortodoxa. Fui para Chicago, ele para o MIT. Um cara que respeito bastante. Mas os últimos artigos dele são de uma cabeça um pouco diferente. E a Unicamp a gente sabe, aquela visão esquisita. Roberto Campos disse uma vez: ‘Ou o Brasil acaba com os economistas da Unicamp ou os economistas da Unicamp acabam com o Brasil’. Tirando o Pérsio, a equipe é muito dessa nova matriz econômica.

E sobre o Haddad como ministro?
Ele não tem tradição na gestão macroeconômica, então imagino que siga a linha geral do partido. Lembrando que o BNDES deverá ser muito ativo na área de crédito, o que pode ser um contraponto ao que Haddad vá fazer. Entre as nomeações que ele já fez, a parte tributária na mão do Bernard Appy eu acho muito bom.

Qual o cenário mais provável para 2023?
Se não é mudando os gastos vai ter de ser aumentando o imposto. E aí tem de ser transparente. Dizer, ‘olha esses gastos sociais eu vou financiá-los tributando os ricos, tributando banco, tributando grandes fortunas…’ Sei lá. Mas nada foi dito. Então, se não vai mudar a composição de gastos e não vai aumentar impostos, a matemática é implacável. Sobram duas opções: ou elevar o endividamento, vendendo títulos, ou um caminho que nem quero imaginar.

Qual?
Fazer como a Argentina e abandonar o regime de meta de inflação [2018]. Olha a inflação deles onde está [92% ao ano]. Prefiro descartar essa quarta opção. É apenas o registro teórico.

Qual a mais provável?
Aparentemente só sobrou para financiar [o estouro do teto] a questão da dívida. E o mercado já dá sinal do que acha. A curva de juro ficou bem mais inclinada. Porque a taxa de juros neutra, e não sei se é um conceito em que todos prestem atenção, é aquela que nem está alta pra gerar recessão nem baixa pra provocar inflação. E ela reflete o risco do país. A taxa do BC é muito simples: se eu quiser apertar porque a inflação está acima da meta pratico juro real acima do neutro, o que ele vem fazendo.

Adia-se a queda do juro e o que mais?
Pode aumentar o risco, e já está aumentando, dificultando o trabalho do BC.

O calcanhar de Aquiles do juro está nesse endividamento crescente?
Em 2023 a relação dívida-PIB vai aumentar. Para financiar esse déficit, a taxa de juro real vai ser por ordem de 6,5%. Se subtrair daí o PIB, e vamos ser legais com o novo governo, dizer que vai crescer 1%, e colocar um dado técnico de mais 0,5% da diferença inflação-PIB, você precisa de superávit primário para estabilizar a dívida em torno de 4,5% a 5%. Por baixo. Mas não vai ter superávit. Será déficit.

E nosso espaço para endividamento não é o de países desenvolvidos, certo?
Nosso mercado é muito menor, com um grau de confiança muito menor. O que significa dizer que o ponto crítico do nosso endividamento é muito menor também. É só isso. Comparar nosso mercado de títulos com o dos Estados Unidos é de uma burrice fantástica. Não sei qual o número mágico em que o investidor vai regatear nossos títulos, se 85% ou 90% da relação dívida-PIB. Porque some-se a isso a trajetória da curva da dívida, que é de alta.

“Essa gastança sem fonte de receita definida aumenta o risco do país, elevando a taxa neutra e dificultando o trabalho do Banco Central” (Crédito:Istock)

O Focus de segunda-feira (19) traz Selic ainda nas alturas (11,75%), mas em queda.
E eu nem apostaria nesse juro. Será maior.

Maior do que a aposta do mercado?
Focus? Vamos lá. Quem preenche o Focus são os economistas de várias instituições, né? Bancos, corretoras, consultorias. Eu parei de responder porque ficava toda hora explicando por que a minha projeção era tão diferente da mediana. Prefiro olhar para a inflação implícita da Anbima.

Por quê?
É mais confiável. Ela sai do mercado de títulos, são bilhões de reais negociados todo dia. Um dinheiro real. A inflação implícita [segunda-feira, 19] já está em 6,60%. O juro pré-fixado para um ano está em 13,89% [no Focus temos respectivamente 5,17% e 11,75% — 1,5 ponto a menos, mais de 2 pontos a menos].

O que significa…
Que não vejo a menor chance de a Selic cair no primeiro semestre.

Por que o teto ruiu?
Porque é capenga. Você bota um limite para os gastos e tem as despesas que são obrigatórias, que crescem, como salário de funcionário público, Previdência etc. Chegamos ao ponto em que as obrigatórias — para as quais não têm teto! — representavam 95% no ano passado. Então, se quiser fazer alguma coisa que não é obrigatória, por exemplo, dar bolsa de estudo, fazer hospital, construir ponte, aumentar o Bolsa Família, tem de sair dos outros 5%.

O que precisa ser feito?
Ter uma regra clara e explícita. E cortar. Como ninguém tem peito de cortar as obrigatórias, aumentam o teto.

E a solução viria de onde?
De uma Reforma Administrativa. Mas ninguém quer mexer no vespeiro. Todo mundo quer ser o monopolista da virtude, mas ninguém quer ser governo. Ninguém quer fazer as escolhas difíceis.