31/03/2023 - 3:40
André Felicíssimo é um especialista em mercado de consumo latino-americano. Trabalhou como diretor e vice-presidente de vendas da P&G por Brasil, México, Panamá, Peru e Venezuela. Nações com economias tão diferentes quanto complexas. Foi essa bagagem acumulada na carreira que fez o executivo chegar ao comando da operação brasileira. Em julho ele completa 30 anos de empresa. Em maio, um ano na presidência da corporação no Brasil. Sua gestão é marcada por alguns detalhes: a porta de sua sala sempre aberta a colaboradores, a capacidade técnica reconhecida e a liderança efetivada por uma fala mansa, mas ainda assim segura e confiante. É dessa forma que Felicíssimo discorre sobre os desafios da companhia e do País. Seu sobrenome incomum parece descrever uma condição permanente. “Sou um eterno otimista”. afirmou.
DINHEIRO — Quais as lições que tirou de suas passagens pelos países em que já trabalhou?
ANDRÉ FELICÍSSIMO — Sempre fui chamado para mudar de um país para outro quando havia um grande desafio. Fiquei até famoso por resolver algumas crises. Em 1998, eu tinha dez anos de empresa aqui no Brasil quando fui para a Venezuela. Ainda era um país com restrições por causa do governo [Hugo] Chávez, mas com uma segurança boa. Os problemas começaram a se agravar quando a segurança passou a ser uma dúvida. Já era uma hiperinflação. E sempre encontramos mecanismos de controle, de compensação. Já o Peru tem muitas lojinhas bem pequenas, que compravam fralda por unidade, sachês de xampu de 12ml, para banho unitário. Tem que inventar uma nova maneira de distribuir, de entender o consumidor. No México, vi um país super-hierárquico, que é um desafio muito grande para liderar organizações. Congelava um pouco a estrutura.
Como gosta de exercer sua gestão agora?
Minha sala fica sempre aberta. Um estagiário entra lá, vai conversar comigo. É um ambiente muito informal. Tem executivos com receio em fazer isso, porque se expõem. Mas eu gosto de uma liderança humanizada. Outro dia recebi a reclamação sobre o estacionamento. Mudamos as regras. Só que não comunicamos direito. Então, foi um pouco confuso. E eu soube disso porque veio muita gente reclamar. A execução está nos mínimos detalhes.

E essa abertura leva a executar processos de maneira mais prática?
Sou fanático por simplificação. Sou formado em engenharia de produção, educado a fazer processos sempre mais simples e eficientes. Às vezes, a melhor maneira de simplificar um processo é eliminá-lo. Nas reuniões com meu time de liderança tínhamos mais de 30 métricas para acompanhar todos os meses. Dava um trabalho enorme só para montá-las. Concluímos que daria para fazer 12 métricas. Mas durante uma reunião comecei a questionar: será que a gente precisa do score card? Porque cada uma dessas métricas eu acabo recebendo em um e-mail, uma planilha, em alguma comunicação. Todo mundo concordou que a melhor maneira era eliminar esse score card.
Alguma coisa mexe com você agora?Algo que o incomode?
Sim. Principalmente os nossos sistemas de gerenciamento de pedidos. Ainda são muito complexos para se comunicar com o cliente, atendê-lo prontamente. Temos hoje um dos melhores sistemas da indústria e ainda há muito que o que melhorar para que a necessidade do cliente entre no sistema com antecedência.
Mas já existe uma certa previsibilidade…
Existe, claro. Sei quanto vou vender no total. O difícil é saber por produto, por cliente, chegar na precisão.
Além desse desafio, interno, há outro que impata a todos: a questão da logística no Brasil. Como superar essa deficiência?
O Brasil ainda é muito dependente do sistema rodoviário. Nós procuramos evitar essa dependência. Para algumas capitais do Norte transportamos por via marítima, do Porto de Santos, em um navio que entra pelo Rio Amazonas navega até perto de Manaus para distribuir. A mesma coisa acontece com outras capitais do Nordeste.
Não seria melhor haver um modal ferroviário mais efetivo?
A gente usa também o ferroviário, mas é muito carente ainda. E o marítimo traz o desafio do tempo de entrega. Há mais necessidade de planejamento, porque navio anda muito mais devagar do que caminhão, do que o trem. E o trajeto fica maior. Então, às vezes embarcamos em um mês para entregar só no final do mês seguinte em alguns locais.
Os hábitos de consumo mudaram com a pandemia. Vocês sentiram isso no negócio?
Somos uma das empresas que mais investe em entendimento de consumidor no mundo. São US$ 2 bilhões todos os anos. Com inovação e lançamentos, vamos elevando a barra para aquilo que chamamos de superioridade irresistível. Ou seja, eu entreguei um produto que elevou a expectativa do consumidor a respeito do que esperar dele. Quando a gente tinha um telefone celular, dava nota dez pra ele. Depois que a gente conheceu o smartphone, a gente deu nota três para o celular. A régua subiu. Essa é a superioridade irresistível. E, sim, a pandemia trouxe novas expectativas. Entender o brasileiro nos faz ver o quanto nossos hábitos de higiene são melhores do que a média mundial. Aqui tomamos 8,5 banhos por semana, enquanto um americano, de alto poder aquisitivo, toma 6,5. Escovamos os dentes três vezes por dia, enquanto a média mundial é de 1,5. Mas mesmo tendo hábitos melhores, o resultado não é bom o suficiente. Temos uma incidência de cáries muito maior do que a média. E por quê? Porque não troca a escova na frequência certa, a pasta de dente é de baixa qualidade…
O preço no Brasil é um desafio grande, pois temos neste momento inflação e juros elevados. Como vê esse momento da economia?
A inflação é um lado do problema. Eu não influencio, eu não defino a inflação. Temos de conseguir crescer independentemente da inflação. É difícil saber o que a concorrência vai fazer diante disso. Mais inflação, mais incertezas sobre o que cada um vai fazer, como cada um vai se comportar. Vou baixar o custo? Vou subir o preço? Mudar a minha estratégia promocional? Mudar o mix de produtos? Tem diferentes estratégias para enfrentar a inflação. E cada categoria necessita de uma estratégia diferente.

Qual seria a conjuntura ideal econômica para a P&G crescer mais no Brasil?
Tem duas palavrinhas mágicas: consumo e desemprego. O que eu espero da economia é isso. Menos pessoas desempregadas, mais pessoas podem consumir. E tem de haver incentivos ao consumo. São as duas coisas que vamos estar sempre olhando para o governo, o resto é com a gente. Independentemente de o governo errar ou acertar, nossa responsabilidade é desenvolver o mercado. Vamos estar sempre tentando crescer [as vendas no Brasil foram 17% superiores em 2022, em relação a 2021] seja qual for o ambiente que iremos enfrentar. Não queremos ser uma indústria que vai simplesmente surfar ondas. Não estamos procurando que o governo faça uma boa onda para pegar nossa pranchinha e subir nessa onda e chegar na praia. Vamos construir o barco que vai, independentemente de qualquer onda, nos levar a alcançar o destino. Agora, se tiver uma maré a favor, a gente sempre agradece.
As perspectivas na sua avaliação são de maré a favor?
O ano começou muito bem e eu sou um eterno otimista. A experiência de ter vivido em vários países, com tantos momentos econômicos, hiperinflações, inflações mais estáveis, protestos, instabilidade política e econômica, consumidores diversos, isso tudo traz uma calma na liderança. Saber que você pode ter o controle da situação, sempre vai poder estabelecer uma estratégia vencedora, acaba refletindo até no meu estilo de liderar. Na pandemia, todos queriam ver qual era a posição da liderança, como a gente estava se posicionando a respeito do que ocorria com a economia. Porque confiavam mais nas empresas do que no próprio governo.
São 30 anos de empresa. Como vê o André e a P&G daqui a dez anos?
Aprendi muito num treinamento que fiz em West Point, nos Estados Unidos, na United States Military Academy, que é onde eles treinam os melhores militares. Aprendi algo que eu nunca mais esqueci: sempre valorizar o líder que consegue ter uma combinação equilibrada de competência e caráter. Eu gostaria muito de ser lembrado por essa reputação de liderar a organização através de caráter e competência. E a P&G estará explorando o tamanho que ela pode ter aqui no Brasil. O Brasil é o terceiro maior mercado nas categorias em que participamos. Mas ainda está próximo da décima subsidiária nossa em performance. Então, podemos triplicar de tamanho aqui.