25/05/2011 - 21:00
A economista Débora Giorgi, ministra da Indústria da Argentina, já declarou à imprensa do seu país que gosta de desacelerar da rotina intensa nos lagos da região de Mar Del Plata, para singelas pescarias. Torcedora do Boca Juniors, Débora mostra uma faceta mais sangue quente quando consegue ir ao estádio ver os jogos do seu time do coração. Chega a soltar alguns palavrões em defesa do clube de futebol mais popular do país. Pois o temperamento mercurial da ministra ficou evidente nos últimos dez dias, quando Brasil e Argentina entraram em rota de colisão em função do comércio bilateral. Não houve palavrões para defender a indústria local.
Débora, de uma penada, aumentou, sem prévio aviso, neste ano, a carga da estratégia protecionista que adota contra os produtos brasileiros. O número de salvaguardas e restrições a artigos importados do Brasil subiu significativamente. Ao todo, havia 921 medidas restritivas até o início do mês, 24% a mais que no final de 2010, segundo a consultoria argentina Abeceb, afetando as vendas de 600 produtos brasileiros.
“Não vamos encarar nenhuma negociação que ponha em risco um só posto de trabalho nacional”
Débora Giorgi, ministra da Indústria da Argentina
A dose do “veneno” portenho foi muito alta para um parceiro como o Brasil, destino de mais de 80% dos carros exportados pela Argentina, e que responde por 26% do comércio exterior daquele país. Assim, o governo Dilma Rousseff decidiu reagir. Sem muito alarde, o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, mandou acertar a jugular da indústria argentina: criou licenças não automáticas para a importação de carros e autopeças do Exterior, o que significa que os veículos importados podem ficar parados na fronteira até 60 dias.
Nem em seus piores pesadelos a ministra Débora poderia imaginar uma retaliação desse naipe, dado o peso estratégico da indústria automobilística na economia dos vizinhos do rio da Prata. Números da consultoria argentina Analysis revelam que, em 2010, 70% da expansão industrial se concentrou em veículos e autopeças.
A decisão do governo Dilma de endurecer com o governo Kirchner em relação à entrada de veículos foi percebida como uma evidência de que a paciência estratégica – como ficou conhecida a política de tolerância aos arroubos protecionistas da Argentina – se esgotou. Mais do que um jogo de cena para conter a impáfia argentina, a reação brasileira mostra uma postura mais rígida na política externa da presidente, diferente do estilo de seu antecessor.
A tradição diplomática do País inclui diversos episódios em que a reação foi lenta perante conflitos bilaterais. Foi assim em 2006 quando a Bolívia, presidida por Evo Morales, decidiu nacionalizar a unidade da Petrobras naquele país. Ou ainda no entrevero entre a brasileira Embraer e a canadense Bombardier em 1996, quando a fabricante de aviões da América do Norte acusou o Brasil de conceder subsídios públicos que facilitaram o avanço do país no mercado de aviação.
A equipe de Dilma assume uma postura de mudança. Na terça-feira 17, no primeiro encontro entre autoridades dos dois países para discutir a crise, na capital portenha, a ministra Débora pediu a liberação dos veículos das aduanas brasileiras como sinal de boa vontade. A resposta do embaixador brasileiro, Ênio Cordeiro, foi taxativa: “Os sinais de boa vontade devem ser recíprocos.” Eis por que, após trocas de farpas, a ministra Débora sinalizou que está disposta a negociar.
A proposta de discutir uma trégua foi aceita pelo ministro Pimentel. Embora não pretenda levantar as barreiras comerciais no curto prazo, o governo brasileiro quer chegar a uma solução rápida e sem prejuízos para a relação entre as presidentes Dilma e Cristina Kirchner. Exportadores brasileiros reclamam de mercadorias paradas nas alfândegas argentinas há cinco meses. É o caso da indústria de calçadista.
“Sem essa restrição, poderíamos vender 25 milhões de pares por ano para lá, mas hoje estamos limitados a 15 milhões”, diz Heitor Klein, diretor da Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados). Para Luiz Fernando Antônio, ex-funcionário graduado do governo Lula, os artifícios dos argentinos de 50 anos para cá, para fortalecer sua moeda, custaram caro. “Daí o protecionismo que se sustenta com desequilíbrio fiscal.”
A bronca argentina cresceu à medida que os brasileiros ampliaram as exportações para lá em ritmo acelerado, enquanto a recíproca não foi verdadeira. Somente no primeiro trimestre deste ano, o Brasil vendeu para a Argentina US$ 4,77 bilhões, 34% a mais do que no mesmo período do ano passado, e comprou US$ 3,71 bilhões, 21% mais do que em 2010. O que mais dói nos argentinos é mesmo o saldo comercial de US$ 1,064 bilhão, favorável ao País.
Carros argentinos em uruguaiana: salvaguarda pode atrasar até 60 dias a entrada de carros no Brasil
Com ou sem déficit, os argentinos terão de encarar o Brasil, pois a restrição à exportação de veículos extrapola o comércio exterior. O apoio dos industriais e da cadeia automobilística à campanha de reeleição da presidente Kirchner, neste ano, é fundamental. Isso explica, por exemplo, por que na quarta-feira 18, um dia após ter pedido ao embaixador Cordeiro, um alívio na situação, a ministra Débora tenha voltado a jogar para a plateia, esgrimindo o discurso protecionista.
Ela aproveitou um evento empresarial para dizer que o país não vai encarar “nenhuma negociação que ponha em risco um só posto de trabalho nacional”. A prova dos nove para se verificar sua real postura vai ser conhecida nesta semana, quando o secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento, Alessandro Teixeira, e o secretário da Indústria da Argentina, Eduardo Bianchi, se reúnem para começar a aparar as arestas.