A cidade de Detroit, no Estado americano de Michigan, é famosa por seus carros e por sua música. Montadoras como Ford, General Motors e Chrysler instalaram suas primeiras fábricas lá, ainda nos anos 1920. As frias ruas varridas pelo vento do lago Michigan, na fronteira entre Estados Unidos e Canadá, também foram palmilhadas por ícones da música, como cantores de jazz e blues e a diva pop Madonna, além de ídolos do esporte, como o campeão dos pesos pesados Joe Louis. A partir da quinta-feira 18, mais um elemento veio contribuir para sua fama. Com 700 mil habitantes, um terço da população dos anos 1960, e vergada por dívidas impagáveis, a capital do automóvel pediu concordata. 

 

89.jpg

Terra devastada: desocupação é tão grande que urbanistas chegaram a propor

a demolição dos imóveis vazios e sua transformação em hortas

 

“Falemos sem rodeios: Detroit quebrou”, disse Rick Snyder, governador de Michigan, em uma entrevista na quinta-feira, após a prefeitura solicitar a um tribunal federal permissão para postergar unilateralmente o pagamento de uma dívida que pode superar US$ 18,5 bilhões. Embora esse recurso seja legítimo para municípios dos Estados Unidos – é o chamado “Chapter 9”, semelhante ao “Chapter 11”, disponível para as empresas –, seu uso torna Detroit tanto a maior cidade americana em população a deixar de pagar o que deve quanto a praticante do maior calote desse tipo. Até então, o recorde pertencia ao município de Jefferson, no Alabama, que deixou de honrar dívidas de US$ 4 bilhões em 2011. A notícia representa um fracasso para a cidade e, indiretamente, para a administração de Barack Obama. 

 

90.jpg

Rick Snyder, governador do estado de Michigan: “Vamos falar

sem rodeios: a cidade de Detroit quebrou”

 

No início de seu primeiro governo, em dezembro de 2008, o presidente foi duramente criticado por injetar US$ 24,9 bilhões nas três grandes montadoras. Posteriormente, Obama transformou o governo americano no controlador virtual da GM, comprando US$ 30 bilhões em ações, depois revendidas no mercado. As montadoras se recuperaram e voltaram ao azul dois anos mais tarde, mas nada disso ajudou Detroit. Em busca de eficiência, as empresas demitiram operários em profusão. A retração dos empregos no setor automobilístico fez a população encolher 26% entre os anos 2000 e 2012. Pior: boa parte dos habitantes que ficaram, 80% deles afro-americanos, é formada por operários demitidos pelas montadoras, com baixa qualificação e com poucas perspectivas de recolocação profissional. 

 

Um em cada três moradores vive abaixo da linha de pobreza. Com munícipes sem renda e empresas sem vendas, a cidade vem sofrendo um desequilíbrio crônico em suas finanças. A prefeitura enfrenta problemas de difícil solução. Detroit é um município grande. Ocupa uma área de 360 quilômetros quadrados, pouco maior que o de Guarulhos, na Grande São Paulo. Muitos de seus imóveis estão vazios. Calcula-se que 40 mil casas, edifícios industriais e terrenos permaneçam sem ocupantes. A desvalorização dos preços da terra é tão grande que, no auge da crise das montadoras, alguns urbanistas chegaram a propor que os lotes desocupados fossem convertidos em áreas agrícolas, para a produção intensiva de alimentos. 

 

91.jpg

Edifício-sede da General Motors em meio a galpões vazios: déficit da prefeitura

é de US$ 100 milhões por mês desde 2008 

 

Nesse cenário, as contas não fecham. Desde 2008, a estimativa é de que os gastos superem as receitas em US$ 100 milhões todos os meses, déficit que vem sendo coberto por meio de empréstimos crescentes. A situação é tão grave que Kevyn Orr, indicado pelo governador Snyder para ser o supervisor da situação financeira de Detroit, declarou que o total da dívida é incerto. Embora os documentos do processo de concordata digam que o buraco nas contas é de US$ 1 bilhão, o rombo pode chegar, na pior das hipóteses, a US$ 20 bilhões. A saída da concordata será tumultuada. Os servidores públicos municipais contam com aposentadoria e planos de saúde generosos, espelhados nos concedidos pelas montadoras. 

 

A redução desses benefícios aos trabalhadores da iniciativa privada foi uma das exigências do governo para ajudar as empresas automobilísticas, mas não houve um movimento semelhante para o setor público. Pior: a crônica falta de recursos deixou a prefeitura defasada em informática e com uma base de dados imprecisa, o que torna difícil aumentar a arrecadação. O impacto do Chapter 9 será sentido em todo o mercado de títulos públicos municipais, conhecidos como “muni bonds”. Isentos de imposto, eles são um dos principais instrumentos de poupança de longo prazo para os investidores americanos. Segundo estatísticas do Federal Reserve, em 2011 havia US$ 3,7 trilhões desses títulos em circulação. A concordata de Detroit deverá elevar a incerteza nesse mercado, dificultando a captação de recursos por parte de outras cidades.

 

92.jpg