São Miguel do Guamá é uma cidade de 60 mil habitantes do nordeste do Pará, localizada a 150 quilômetros da capital, Belém. A engrenagem da economia local depende do poder público e da agricultura familiar. Quase nada de indústria. Metade da população economicamente ativa possui, em média, rendimentos mensais de até meio salário mínimo: R$ 606. Um município com inúmeros problemas sociais e estruturais, semelhante ao da maioria das cidades interioranas do Brasil. Foi lá que, na semana passada, o empresário Maurício Lopes Fernandes Júnior, dono da Cerâmica Modelo, reuniu parte de seus funcionários para falar de política. Uma situação que se tornou comum num clima de disputa acirrada pela principal cadeira do Palácio do Planalto, em que o atual presidente Jair Bolsonaro (PL) tenta se manter no cargo diante de um adversário que está à frente nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Debater política, dentro dos limites da lei e da civilidade, é salutar. Mas não foi o que ocorreu. O episódio, gravado, deixou de ser uma situação normal e se caracterizou como crime de assédio eleitoral. O empresário disse aos funcionários que fechará suas três fábricas de telhas e tijolos caso o petista vença as eleições. E mais: ofereceu R$ 200 para cada colaborador se Bolsonaro for reeleito. Em São Miguel do Guamá, Lula obteve 62,96% dos votos válidos (20.452) contra 28,18% do atual presidente (9.153). “Se Lula ganhar, vocês podem ter certeza que mais da metade das cerâmicas de São Miguel vai fechar. Eu sou um que, se ele ganhar, vou fechar as três cerâmicas que eu tenho”, disse o patrão, no vídeo que viralizou nas redes sociais.

VOTO LIVRE? Ministério Público do Trabalho fecha o cerco a empresários que têm utilizado de pressão e coação a funcionários para votarem em candidato da preferência deles. (Crédito:Fernando Bizerra)

Em sua fala, Fernandes Júnior pressiona e ameaça o emprego daqueles que não têm muitas opções de trabalho. Ao prometer vantagem financeira em troca de voto, infringe os artigos 299 e 301 do Código Eleitoral (lei número 4.737/65), em que as penas variam de reclusão de até quatro anos e multas. Esse descalabro ocorrido na cidade paraense tem se repetido Brasil afora, algo que parece fora de controle, mas que o Ministério Público do Trabalho (MPT) tenta conter com ações efetivas. O número explodiu. Já são 173 casos que o órgão investiga após receber denúncias de trabalhadores que se sentiram coagidos. No caso do empresário de São Miguel do Guamá, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT estadual. Ele também terá de pagar R$ 150 mil em sanções por dano moral coletivo.

Além de tentar chantagear seus empregados em nome de uma suposta luta do bem contra o mal, o empresário expôs sua pseudomoralidade ao ter sido flagrado em irregularidades trabalhistas, crimes que podem configurar fraude fiscal e previdenciária. Trata-se de uma contradição muito comum entre os que levantam a bandeira do combate à corrupção. Fernandes também foi autuado e recebeu multas por manter em suas empresas profissionais sem registro e por não fornecer equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados. O empresário ainda teve de gravar outro vídeo se retratando. “Fiz uma grande burrice”, afirmou. Fez. E um crime. Diante de tantas denúncias, o MPT emitiu uma nota técnica em que orienta atuação uniforme de procuradores. O órgão afirma que o assédio eleitoral pode ser penalizado tanto na esfera trabalhista como na criminal. Cita a Constituição como balizador da manutenção da democracia. “A soberania popular, exercida pelo voto sufrágio universal, direto e secreto, é direito fundamental de primeira dimensão que deve ser respeitado e preservado”.

GRAVAÇÃO VAZADA Eronildo Valadares, empresário e ex-prefeito de Porangatu (GO), enviou áudio para um grupo de produtores dizendo que fecha sua empresa se Lula ganhar a eleição. (Crédito:Reprodução)

OUTROS CASOS Entre as quase 200 denúncias averiguadas, a região Sul do País é a campeã de registros: 83. Na segunda posição está a região Sudeste, com 43 situações de assédio eleitoral registradas. Em seguida está o Nordeste (23), o Centro-Oeste (13) e depois o Norte (11). No Centro-Oeste, região onde Bolsonaro venceu em todos os estados e obteve 53,8% dos votos, contra 37,8% de Lula, dois casos tiveram grande repercussão.

Antes mesmo do primeiro turno, o pecuarista do Tocantins Cyro Toledo prometia 15º salário aos seus empregados caso o atual presidente vencesse as eleições. A Justiça deferiu uma liminar para proibi-lo de oferecer vantagem ou ameaçar seus colaboradores. Ainda será julgado o pedido do MPT para condenação do pecuarista ao pagamento de R$ 1 milhão por dano moral coletivo. O outro foi de Eronildo Valadares, empresário e ex-prefeito de Porangatu (GO), que enviou áudio para um grupo de produtores dizendo que fechará sua empresa e liquidará todo o estoque caso o petista ganhe a eleição presidencial. “Se o Lula ganhar vai fechar a empresa”, disse na gravação que vazou. Ele nega que tenha obrigado qualquer colaborador a seguir seus ideais políticos. Após ação civil pública ajuizada pelo MPT de Goiás, a Justiça o proibiu de ameaçar os funcionários em relação à escolha do voto. Em caso de descumprimento, pagará multa de R$ 45 mil.

“GRANDE BURRICE” Maurício Lopes Fernandes Júnior, dono da Cerâmica Modelo, no Pará, reuniu funcionários para dizer que, se Lula vencer o pleito, fechará suas três unidades. E ofereceu dinheiro em caso de vitória de Bolsonaro. Foi punido pelo MPT. (Crédito:Reprodução)

No Nordeste, onde Lula obteve 67% dos votos no primeiro turno, ante 26,8% de Bolsonaro, a empresária Roseli Vitória Martelli D’Agostini Lins, sócia da Imbuia Agropecuária, na Bahia, incentivou pelas redes sociais outros pecuaristas a demitirem “sem dó” os funcionários que votarem no petista. O MPT local investigou e firmou um TAC em que ela se comprometeu a custear campanhas em emissoras de rádio da região para reforçar a liberdade do voto e a ilegalidade de qualquer atitude empresarial que vise coagir empregados a votar ou deixar de votar em alguém. Roseli também foi obrigada a publicar uma retratação pública em suas redes sociais.

No Sul, a empresa paranaense do ramo de concreto Concrevalli, que tem como sócio-proprietário Paulo Sergio Maciel, anunciou nas redes sociais que 30% dos funcionários seriam demitidos caso Lula ganhe. O MPT acionou a companhia, que retirou do ar todos os perfis em redes sociais. Foi pedido ainda pagamento de indenização de R$ 50 mil por danos morais coletivos. Maciel afirma que não se trata de assedio eleitoral, e sim de um posicionamento relacionado a cancelamento de contratos. No Rio Grande do Sul, a empresa Stara, do Grupo Terra Boa, alertou os funcionários para o corte de 30% do orçamento caso o petista vença. O MPT gaúcho pede R$ 10 milhões pelo crime de assédio eleitoral.

AMEAÇA NAS REDES Sócia da Imbuia Agropecuária, na Bahia, Vitória Martelli incentivou demissão sem dó de empregados que votarem em Lula. (Crédito:Reprodução)

São casos que se repetem desde a eleição anterior, em 2018. Quatro anos atrás, o caso mais emblemático foi de Luciano Hang, dono da rede varejista Havan, que em vídeo divulgado nas redes sociais induziu seus funcionários a votarem em Bolsonaro pois, do contrário, suas lojas seriam fechadas e os funcionários perderiam seus empregos. A empresa foi condenada a pagar indenização de R$ 30 mil por assédio moral a uma ex-funcionária. A fragilidade da punição alimentou a avalanche de crimes de agora.

Além da quebra de compliance e dos crimes, as empresas arranham sua imagem. Marcio Welter, fundador e CEO da Lumen Academy, especialista em marketing e gestão empresarial, aponta três principais danos. O primeiro referente aos resultados da companhia. “Porque afeta o ambiente de trabalho e a inclusão das pessoas nele. Cada um tem suas opiniões, estamos em um mundo diverso, então precisamos ter o cuidado de não impor a nossa visão sobre a visão dos outros.” O segundo sobre a cultura da empresa. “As consequências disso são, automaticamente, o medo, a destruição do sistema de confiança e o impacto no engajamento dos resultados.” Em terceiro, o prejuízo na reputação da marca. “Seja no contexto do ESG, que inclui a transparência e a inclusão de pessoas e ideias, mas, principalmente, pela falta de coerência entre um discurso correto de inclusão.” Talvez isso tudo valha para empresas e líderes sérios. Mas não é o caso de dezenas de empresários brasileiros que se sentem donos de seus empregados. Como agiam os antigos senhores de escravos.