15/01/2016 - 20:00
Editada em 18 de dezembro passado, a Medida Provisória (MP) 703 cria regras para que as empresas possam fechar acordos de leniência – uma espécie de delação premiada para pessoas jurídicas. Desde então, o teor da MP vem sofrendo uma saraivada de críticas. Alguns apontam que ela tenta salvar as empreiteiras envolvidas na Lava Jato, celebrando a impunidade. Outros, que desestimula a delação premiada. O professor titular de Direito Público e de Estado da USP, Floriano de Azevedo Marques Neto, dá sua visão sobre o tema.
Quais os principais pontos da MP sobre Leniência publicada pelo governo Dilma no ano passado?
A MP surge no contexto de uma adequação da legislação brasileira a uma realidade que junta um escândalo sem precedentes e uma legislação relativamente nova e não testada, que é a Lei Anticorrupção. Nova e não testada porque ela não é aplicável aos eventos da Lava Jato. É uma MP que, com toda a resistência, procura equacionar alguns gargalos e está longe de sugerir impunidade.
Quais são esses gargalos?
Existe uma multiplicação de instâncias atuando sobre os mesmos fatos, com ângulos de punição diferentes. O Ministério Público, por exemplo, atua, exclusivamente, no campo da pena criminal, mas também na responsabilização dos danos e na aplicação de sanções civis. A Controladoria-Geral da União (CGU) atua no campo do ressarcimento e das sanções cíveis. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) apura os mesmos fatos pelo ângulo da defesa da concorrência. A Advocacia-Geral da União (AGU) tem as mesmas atribuições do Ministério Público para mover ações de improbidade.
As construtoras Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez já assinaram acordos de leniência, acertando o pagamento de multas de R$ 800 milhões e R$ 1 bilhão, respectivamente. Por que a necessidade de uma MP para tratar desse tema?
Os dois casos são acordos absolutamente alinhados com a prática internacional. A Camargo Corrêa fez um acordo com o Ministério Público. Mas se, amanhã, a CGU quiser declará-la inidônea e impossibilitar de contratar pelo governo, ela poderia. Ainda que o Ministério Público tenha feito um acordo, a CGU é autônoma. Ela abre um processo e pode impedir a Camargo Corrêa de ser contratada pela União.
Quer dizer que existe uma insegurança jurídica para quem quer fazer acordos de leniência?
Sim, claro. Outro exemplo concreto é a Andrade Gutierrez que fez um acordo no qual paga uma multa de R$ 1 bilhão. Existe uma ação ajuizada pela AGU para receber valores. Mesmo que a AGU entenda que o valor de R$ 1 bilhão satisfaça a União e a Petrobras, ela não pode desistir da ação de improbidade, porque a lei atual veda. Olha que loucura. Dois acordos que o Ministério Público entendeu legítimo e satisfatório não podem ser atendidos plenamente em seus objetivos.
A MP, no entanto, vem sofrendo diversas críticas. Uma das alegações é que ela desestimula as delações premiadas. Outra ressalva refere-se ao fato de a MP acobertar empresas corruptas por permitir que, mesmo sob sanções, possam assinar novos contratos com o poder público. A MP não está estimulando a impunidade?
Não creio. A delação premiada é um acordo que se faz no âmbito penal. Nenhuma empresa que faça acordo na CGU ou faça junto ao Ministério Público consegue obter o prêmio da delação premiada, que é a mitigação da pena criminal. Imaginando que a CGU firme um acordo com uma empresa, os executivos da empresa continuam a correr o risco de serem condenados se tiverem praticados crimes. Segunda questão. Temos de separar o consenso do que é exagero. Há um consenso de que as empresas que estão envolvidas nesse escândalo não devem sair incólumes. Mas uma empresa é muito mais do que seus acionistas. Entender que a única solução é extinguir a empresa é querer que o Brasil tenha uma punição que não existe em nenhum lugar do mundo. A Siemens, por exemplo, teve dois escândalos de corrupção. Pagou multas de quase quatro bilhões de euros, mas não acabou. Ela permaneceu funcionando e fez um processo brutal de depuração e limpeza, mas não foi proibida de ser contratada pelo poder público.
Não é estranho também permitir a entrada de mais de uma empresa no acordo de leniência?
Depende do acordo. No âmbito do antitruste, faz sentido ter o privilégio do primeiro. Ninguém faz cartel sozinho. Se há dez empresas fazendo um cartel, quero incentivar a primeira para denunciar as outras nove. As outras nove não podem vir para esse acordo pelo simples fato que o pecado dela já foi contado. Nos casos investigados pela Lava Jato é diferente. Existe uma conduta comum, que é individualizada pela empresa. Cada uma delas teria pago propina sobre o seu contrato para o mesmo agente. Então, fica difícil criar a regra da primariedade, porque cada contrato é diferente, embora as condutas sejam semelhantes.
É possível garantir que a empresa que faz acordo de leniência não volte a praticar atos de corrupção?
Não existe vacina plena para a conduta humana. Mas, na prática internacional, há várias formas que se mostraram eficientes e uteis para proteger a empresa. Por exemplo, ter programas que obriguem a empresa a registrar os contatos com agentes públicos. Segundo, é preciso ter mecanismos de auditoria externa, como a Siemens fez. Não dá pra acreditar que toda a experiência lá fora não seja útil e aplicável no Brasil. Não dá para acreditar que tenhamos complexo do vira-lata e que nada vai dar certo no Brasil porque nos fomos talhados para o crime.
Como funcionam as legislações de leniência em outros países?
Nos EUA existe maior concentração da autoridade responsável por averiguar, investigar e fazer o acordo de leniência. O Departamento de Justiça dos EUA é supercapacitado e treinado e faz um acordo que compreende todos os âmbitos. A segunda diferença é a nossa cultura de compliance (conjunto de disciplinas para fazer cumprir as normas legais e regulamentares), que é recente e pouca madura. O diretor de compliance de uma grande empresa americana ou europeia é um ser temido. Ele não encontra ninguém para ir com ele no happy hour, porque tem o papel de fazer o acompanhamento e escrutínio diário.
Poderia dar alguns exemplos de acordos fechados lá fora?
Podemos citar a alemã Siemens, a francesa Alstom e a americana Lockheed Martin. O caso mais antigo é o do Lockheed Martin, nos EUA, na década de 70, que foi investigada por prática de corrupção generalizada. Ele chegou a um acordo final e foi punida com uma multa astronômica. Nem por isso ela parou de fornecedor para o Estado americano.
O que é há de comum nesses casos?
Nenhuma dessas empresas foi inabilitada de continuar existindo e de vender para o governo. Todas elas foram obrigadas a pagar multas e ressarcimento pesados. Todas elas tiveram que submeter para as autoridades programas de cessão e de não reiteração de práticas, sérios e rigorosos. Acordos de leniência não são um salvo-conduto para a impunidade.