Você pode não acreditar, mas há nos Estados Unidos uma grossa linha que une os caminhos do atual presidente Joe Biden e seu antecessor e rival político Donald Trump. E essa linha é made in China. E envolve telecomunicações. Desde 2017 o avanço exponencial dos asiáticos, em especial dos chineses, no desenvolvimento de tecnologias de comunicação colocou os norte-americanos em alerta. Trump alegava espionagem e proteção da indústria nacional e agora, seu antagonista político segue caminhos muito similares. Às favas com o liberalismo de mercado — aquele da livre concorrência — Biden decidiu banir do mercado americano duas das maiores empresas de telecom do mundo, a Huawei e a ZTE. Dahua e Hikvision, menores e mais voltadas a câmeras de vigilância, também sofreram restrições de homologações na Comissão Federal de Comunicações (FCC), o órgão equivalente à Anatel no Brasil. A explicação para a medida, tal qual sua nêmesis política, é a segurança nacional.

O aperto de mão e o sorriso amistoso entre presidentes Joe Biden e Xi Jinping, no inédito encontro entre os dois, às vésperas da cúpula do G20 na Indonésia, foi só pose para a foto. Isso significa, segundo especialistas ouvidos pela DINHEIRO, uma escalada das tensões políticas entre os dois países, que ainda possuem um impasse envolvendo a autonomia da ilha de Taiwan. E, tratando de quem são, a rusga diplomática envolvendo os dois países mais ricos do planeta vai afetar a economia mundial. Como a proibição se dá em um dos setores mais sensíveis e importantes para o resto do globo, os reflexos são ainda maiores. Juntas, Huawei e ZTE respondem por 30% do mercado mundial de telecomunicações, de acordo com a Ovum, consultoria britânica de pesquisas em tecnologia.

30% do mercado de telecom no mundo é da huawei e da ZTE, duas gigantes que abastecem boa parte dos equipamentos no Brasil

Além de se fechar as portas para importantes fornecedoras de equipamentos eletrônicos da China, os americanos podem causar um nocivo efeito dominó na cadeia global de suprimentos, em um momento em que a tecnologia 5G avança em mercados emergentes, de acordo com a avaliação do advogado Thiago do Val, professor de Relações Governamentais e Institucionais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie, em Brasília. Ele teme que a medida intensifique a crise de distribuição de semicondutores e de aparelhos para operadoras de telefonia, já que as europeias Nokia e Ericsson não teriam como suprir a demanda hoje atendida em conjunto por Huawei e ZTE. “Não há dúvidas de que o impacto será muito grande em todo o mundo”, afirmou do Val. “O problema vai além da alegação de que há um risco à proteção dos dados. Nessa guerra, está em jogo o controle de Inteligência Artificial, da mineração de dados, da Internet das Coisas, dos carros autônomos, entre muitos outros”, disse.

Saul LoebPOSANDO PARA FOTO Os presidentes de China e Estados Unidos, Xi Jinping e Joe Biden: encontros amistosos apenas na fotografia. (Crédito:Saul Loeb)

O próprio Brasil deve ser afetado, já que China e Estados Unidos são os maiores fornecedores de equipamentos eletrônicos de alta tecnologia para o País, desde smartphones até sistemas de automação indústria e de comunicação para o controle aéreo, por exemplo. É o que avalia o especialista em China e Estados Unidos na Valor Investimentos, Charo Alves. “Huawei e ZTE terão de rever suas operações para que os equipamentos possam voltar às prateleiras”, afirmou. Para ele, os produtos atingidos terão de ser repaginados, passando a ser indicados a usuários finais ou, no máximo, pequenas empresas, para fins de segurança doméstica ou patrimonial. E mais: muitos países poderão seguir o exemplo americano e também vetar o uso desses produtos em seus respectivos mercados.

ESPIONAGEM O receio das agências de inteligência americanas é que as empresas chinesas, com a tecnologia 5G, possam ser obrigadas a fornecer ao governo de Pequim informações estratégicas de empresas e de órgão públicos. A lei chinesa de proteção de dados prevê que, em casos de defesa dos interesses nacionais, a espionagem de cidadãos, companhias e governos pode ser flexibilizada. Um exemplo disso é que as câmeras da Hikvision têm sido, segundo os americanos, utilizadas para oprimir e controlar minorias étnicas, como o povo uigures, que hoje povoam a região autônoma chinesa de Sinquião e os muçulmanos da província de Xinjiang. “Estamos comprometidos com a garantia da segurança nacional, excluindo equipamentos de comunicações não confiáveis dentro de nossas fronteiras”, disse, em comunicado, a presidente da FCC, Jessica Rosenworcel.

A próxima ofensiva dos Estados Unidos contra as tecnologias chinesas pode atingir também a rede social TikTok, famosa pelos vídeos curtos. No início de novembro, um alto executivo da FCC, Brendan Carr, afirmou que os legisladores dos EUA também deveriam proibir o aplicativo no mercado local em razão do potencial danoso com manuseio de dados pessoais e confidenciais pela ByteDance, holding chinesa que controla a marca. Tudo sem qualquer prova. Mas a disputa entre americanos e chineses, ao contrário do TikTok, não será um vídeo curto.