A sede da Delta Construções, sexta maior construtora do País e acusada de envolvimento nos escândalos de corrupção que tem como pivô o bicheiro Carlinhos Cachoeira, será invadida nesta semana. Não por policiais em busca de provas contra a empresa, seguidos por um batalhão de câmeras de tevê e empurra-empurra de jornalistas. Na verdade, o escritório central, na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, será tomado por dezenas de homens engravatados da holding J&F, controladora do JBS, maior fornecedora de proteína animal do mundo. Advogados, contadores e auditores, responsáveis por iniciar o processo de averiguação das contas da construtora, cuja gestão será assumida pelo grupo comandado pelo empresário goiano Joesley Batista, começam a trabalhar na segunda-feira 14. 

 

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Joesley Batista CEO da J&F, controladora do JBS: “Nosso objetivo é honrar

os contratos e preservar os mais de 30 mil empregos da Delta”

 

Pelos termos do negócio, anunciado na quarta-feira 9, a J&F não utilizará um centavo de seus cofres para ficar com a Delta. Só depois de uma rigorosa diligência, que será realizada pela consultoria KPMG, a holding decidirá se comprará a construtora do empresário pernambucano Fernando Cavendish, usando os recursos da distribuição de dividendos futuros da própria Delta para pagar os antigos controladores. “Nosso objetivo é honrar os contratos e preservar os mais de 30 mil empregos da Delta”, disse Batista, em comunicado sobre a transação. Por que a J&F, um colosso cujo faturamento deve atingir R$ 70 bilhões em 2012 e é um dos três maiores grupos brasileiros, atrás apenas da Petrobras e da Vale, resolveu assumir a gestão e a possível compra de uma empresa problemática como a Delta, envolvida até a última saca de cimento num dos maiores escândalos da República das últimas décadas? 

 

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Henrique Meirelles, presidente do conselho consultivo da J&F: ”A Delta, na situação em que está,

é uma oportunidade para o grupo entrar em infraestrutura”.

 

A resposta veio do presidente do conselho consultivo da holding e ex-presidente do Banco Central no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Henrique Meirelles. “A Delta, na situação em que está, é uma grande oportunidade para o grupo entrar em infraestrutura, um desejo que já existia antes”, afirmou Meirelles com exclusividade à DINHEIRO. Em outras palavras, foi a oportunidade de comprar na bacia das almas uma construtora de grande porte, com uma carteira de R$ 4,7 bilhões em contratos, receita de R$ 3 bilhões e um corpo técnico experimentado, estreando em um setor que deve receber estonteantes R$ 380 bilhões em investimentos, entre 2011 e 2014, segundo previsão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Por esse motivo, Batista tinha pressa de fechar o negócio. 


O primeiro encontro teria acontecido em um almoço oferecido pelo CEO da J&F para Cavendish em sua casa, em São Paulo, no fim de abril. Em apenas dez dias, eles acertaram os termos da venda, que foi assinada na segunda-feira 7, na sede da J&F, na Marginal Pinheiros. Se for adiante e comprar a Delta depois da auditoria, Batista entrará, graças a um negócio de oportunidade, para o seleto clube dos grandes empreiteiros nacionais. Trata-se de um grupo reduzido, que conta com sobrenomes como Odebrecht, Camargo, Andrade, Gutierrez e Queiroz Galvão. Ao contrário dessas famílias, donas de grandes conglomerados formados inicialmente na área de construção e que depois diversificaram suas operações, os Batistas iniciaram a vida com um negócio modesto, que nada tinha a ver com o setor: um pequeno açougue em Anápolis, no interior de Goiás, aberto em 1953 por José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro. 

 

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Nas cinco décadas seguintes, com a ajuda de seus três filhos, Júnior, Joesley e Wesley, o patriarca deu origem ao JBS, cuja receita líquida chegou a R$ 61,7 bilhões em 2011, e se transformou em um império com atividades nos setores de celulose, produtos de higiene e limpeza, laticínios e financeiro (confira quadro “Mãos à obra”). No plano estratégico da J&F, a entrada em infraestrutura ocupava uma posição prioritária, justamente por conta dos bilionários investimentos em curso no País. O modelo perseguido pelos Batistas, que hoje controlam 50 marcas e 140 mil funcionários em todo o mundo, é o de um conglomerado global diversificado, que atua em setores que vão de bens de consumo à indústria de base, semelhante aos maiores grupos asiáticos, como os coreanos Samsung e Hyundai. 

 

O grupo avaliou criar um negócio do zero, mas via grandes barreiras de entrada. “Poderíamos começar devagar, mas seria difícil competir com as gigantes da área”, diz um executivo da J&F. “Se abstrairmos as acusações e as questões envolvendo seus dirigentes, a Delta é uma companhia que entrou para o bloco das grandes, tem um importante número de obras no Brasil inteiro e é uma empresa de custo de produção baixo.” Com as mazelas políticas e as supostas ligações com o esquema do bicheiro Cachoeira, a Delta, no entanto, estava à beira da insolvência. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 19 de abril, Cavendish, seu controlador, admitiu que temia quebrar. “Agora virei leproso, né? Só tenho defeitos e sou bandido”, afirmou o empresário. “Não tenho caixa. Se não receber antes de acabar meu dinheiro, quebrei.” 

 

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Mudanças à vista: Humberto Junqueira de Farias, ex-CEO da produtora de etanol Renuka,

foi anunciado como presidente da Delta.

 

Por esse motivo, antes do acerto com a J&F, ele procurou compradores para evitar a falência. Executivos de duas grandes construtoras brasileiras disseram à DINHEIRO que não tinham nenhum interesse em assumir a Delta, porque não consideravam o portfólio de contratos interessante. “São obras commodity, como estradas, que têm margem de lucro muito baixa”, disse um deles, referindo-se aos maiores contratos da construtora sob o guarda-chuva do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). As empreiteiras líderes estão focadas em obras mais complexas e caras, como usinas hidrelétricas ou refinarias de petróleo, que exigem qualificação e têm margens de lucro maiores. “O que mais falta no Brasil é engenheiro e eu não vou colocar os meus para fazer pavimentação de estrada”, disse o outro executivo. 

 

Segundo fontes próximas a Cavendish, algumas construtoras de médio porte chegaram a se interessar por lotes de contratos, mas não pela empresa inteira. O primeiro passo da J&F na Delta será enfrentar o imbróglio jurídico e político para tentar preservar o máximo possível de sua carteira de obras públicas, que representam 99% de sua receita, segundo o anuário da revista O Empreiteiro, com números de 2010. A construtora é a empresa que mais recebeu recursos do orçamento da União nos últimos três anos. No ano passado, foram R$ 830,6 milhões. Neste ano, R$ 197,6 milhões, até 9 de maio. Embora interlocutores da presidenta Dilma Rousseff afirmem que ela desaprova a operação e que o governo não foi consultado sobre a venda, há fortes indícios de que houve articulação política antes de fechar o negócio. 

 

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O empresário José Batista Júnior, irmão mais velho de Joesley, afirmou ao jornal Folha de S. Paulo que o grupo goiano recebeu o sinal verde do governo. Júnior definiu como “conversa de bêbado, de louco” dizer o contrário. “Imagina que o doutor Henrique Meirelles vai fazer um negócio que o governo não quer!”, disse. Oficialmente, a J&F, que desautorizou publicamente a entrevista de Júnior, garante que não procurou o governo. “Suas declarações refletem única e exclusivamente uma opinião pessoal, que está em completo desacordo com os fatos ocorridos”, diz a nota divulgada. No entanto, as estreitas relações do grupo com o governo federal são amplamente conhecidas. O BNDES detém uma participação de 31,4% na JBS e está financiando mais da metade do investimento de R$ 5,1 bilhões para a construção da fábrica de celulose da Eldorado, em Mato Grosso do Sul, que será a maior do mundo, de acordo com a família Batista. 

 

Na Eldorado, que foi colocada sob o comando do executivo José Carlos Grubisich, ex-presidente da Braskem, do grupo Odebrecht, os fundos de pensão da Petrobras e da Caixa Econômica Federal serão acionistas. O problema principal da Delta daqui para a frente será a eventual declaração de inidoneidade da empresa pela Controladoria-Geral da União (CGU), num processo iniciado em 24 de abril, a pedido do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O Palácio do Planalto dá como certo esse fato. Na interpretação de um graduado assessor da presidenta Dilma Rousseff, essa declaração não apenas impediria a Delta de assinar novos contratos com os governos federal, estaduais e municipais, como cancelaria automaticamente todas as obras em andamento, que seriam então concedidas às companhias que ficaram em segundo lugar nas licitações. 

 

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No limite: Cavendish, controlador da Delta, procurou compradores para a construtora

que corria o risco de quebrar.

 

Se houver alguma dificuldade na transferência dos contratos, os trabalhos seriam assumidos pelo Batalhão de Engenharia do Exército, que já executa dezenas de obras em todo o País com problemas na licitação ou abandonadas pelas construtoras. “Eles estão comprando com uma premissa que não é a verdadeira”, diz esse assessor, referindo-se ao portfólio de obras públicas da Delta. Mas há ampla margem para interpretações jurídicas diferentes. A própria CGU não deixa claro se a transferência de controle interfere no processo que está em curso, avaliando se a companhia é inidônea. “Há que se aguardar a forma da anunciada transação para uma avaliação mais completa de suas conse­quências jurídicas”, disse a controladoria, em comunicado. Se for declarada inidônia, a Delta ficará impedida de participar de novas licitações. 

 

Mas há dúvidas sobre as obras em andamento. O advogado Carlos Sundfeld, professor da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo, e especialista em licitações, acredita ser muito difícil que a empresa seja declarada inidônea e que perca os contratos que já estão em andamento. “A meu ver os contratos se mantêm, a não ser que cada um deles tenha irregularidades”, afirma Sundfeld. Os novos gestores da Delta apostam nessa alternativa. Eles argumentam que os problemas da construtora estão concentrados nas ações de seu controlador, Fernando Cavendish, e da atual diretoria, e não na execução dos contratos. “É diferente de uma empresa que não entrega as obras”, argumenta um executivo da J&F. “Mudando o controlador, o motivo do processo de inidoneidade se extingue.” 

 

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Tanto que uma das primeiras medidas da J&F foi afastar o presidente-tampão, Carlos Alberto Verdini. Na sexta-feira 11, a J&F anunciou a contratação de Humberto Junqueira de Farias, CEO da Renuka, uma das dez maiores produtoras de etanol do País, que pertence à indiana Shree Renuka Sugars, para presidir a Delta. Formado em engenharia pelo Mackenzie e com pós-graduação no IMD, na Suíça, Junqueira de Farias, 43 anos, foi CEO da Camargo Corrêa Cimentos de 2008 a 2010. “Será mudado quem for necessário por razão técnica ou jurídica”, diz esse executivo da holding, indicando que a contratação de Junqueira de Farias é apenas uma das etapas das mudanças que ocorrerão. 

 

O grupo goiano alega também que outra grande construtora brasileira foi considerada inidônea por dez anos e conseguiu manter-se atuando em obras públicas por meio de liminares. Além disso, a concessão de obras para um segundo colocado que queira cobrar mais do que o preço da Delta, que ganhou a licitação, poderia dar margem a contestação em outros órgãos públicos, como o Tribunal de Contas da União (TCU). O executivo da J&F, no entanto, admite que há riscos em assumir a Delta, mas lembra o modelo de contrato assinado pela holding. “Vamos supor que tudo dê errado. Nesse caso, devolve-se a empresa aos seus antigos controladores”, diz essa fonte. “Não há risco financeiro assumido pela J&F nesse negócio.” 

 

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O contraventor: o bicheiro Carlos Cachoeira é acusado de ser sócio oculto da construtora Delta

cuja gestão será assumida pela J&F.

 

Só depois de arrumar a casa, nos primeiros dois anos, a J&F terá condições de implantar sua estratégia de investimento em infraestrutura por meio da Delta. A intenção é usar a experiência nas obras públicas para disputar concessões. Antes disso, a holding terá o desafio de recuperar a credibilidade da construtora. Não se trata de uma missão impossível. Há vários exemplos de empresas que assumiram companhias com problemas e que conseguiram reverter o quadro. O caso mais recente envolve a compra do PanAmericano, do empresário e apresentador de tevê Silvio Santos, pelo BTG Pactual, do banqueiro André Esteves. Envolvido em uma fraude contábil que superou os R$ 10 bilhões em 2011, o banco esteve perto de quebrar. 

 

Nas mãos de um novo dono, que o comprou pela pechincha de R$ 450 milhões, não só sobreviveu como conseguiu virar o jogo. No fim do ano passado, o PanAmericano comprou a Brazilian Finance and Real Estate (BFRE), maior financiadora independente de imóveis do Brasil, por R$ 1,2 bilhão. Uma prova de que os problemas de credibilidade dependem muito mais dos homens que dirigem um negócio do que o negócio em si, que o BTG Pactual chegou a contemplar a troca de nome do banco. Após pesquisas com clientes, os novos controladores concluíram que, apesar do escândalo, a marca PanAmericano ainda era muito forte. Por esse motivo desistiram da mudança. É certamente de olho na reprodução desse modelo que Joesley Batista sustenta sua decisão de se transformar num aprendiz de empreiteiro.  

 

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Colaboraram: Guilherme Queiroz, Guilherme Barros e Marcelo Cabral