O Brasil poderia criar um abecedário completo para explicar a história da inflação, principalmente no período de 1980 a 1994, quando acumulou inacreditáveis 20,7 trilhões por cento de inflação. O pesadelo era tão grande que alguns termos e nomes de ministros, que batizaram planos para domar o velho dragão, ficaram tatuados no inconsciente coletivo: aceleração de preços, Bresser Pereira, correção monetária, Dílson Funaro e fiscais do Sarney são verbetes tão familiares para quem tem mais de 35 anos hoje quanto as personagens Odete Roittman e Maria de Fátima, da novela global Vale tudo, que hipnotizou o País em 1989. Pois, na semana passada, o presidente da Força Sindical e deputado federal, Paulinho Pereira da Silva (PDT-SP), tentou acessar esse inconsciente, trazendo de volta outra pérola desse abecedário imaginário. 

 

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Paulo Pereira da Silva, presidente da Força sindical: ”se os patrões

não atenderem a essa reivindicação, cada categoria decidirá

as formas de fazer greve “

 

Para debelar os “assustadores” 6,59% da alta do IPCA dos últimos 12 meses, ele propôs a estúpida ideia de ressuscitar o gatilho salarial, a fim de repor as perdas dos salários a cada três meses, quando a inflação chegasse a 3%. “Se os patrões não atenderem a essa reivindicação, cada categoria decidirá as formas de fazer greve”, disse Paulinho à DINHEIRO, durante a festa do 1º de Maio da Força, no Campo de Marte, na zona norte de São Paulo. Falou bobagem. A última vez que o Brasil ouviu falar em gatilho salarial foi em março de 1986, quando o então presidente, José Sarney, lançou, em cadeia nacional, o Plano Cruzado, para combater uma alta de preços de 225,16% anuais. 

 

Entre diversas medidas heterodoxas, o ministro da Fazenda na época, Dílson Funaro, criou o tal gatilho: cada vez que os preços subissem mais de 20%, os trabalhadores teriam reajustes automáticos. Era mais uma variação da correção monetária, inaugurada em 1964 pelo então ministro da Fazenda, Octavio Gouveia de Bulhões, um dos papas do liberalismo no Brasil. Num documentário sobre a tragédia inflacionária brasileira, o ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco explicou didaticamente o que foi a correção para o País. “Eram doses regulares de morfina, ou cocaína, que geravam uma certa anestesia”, disse Franco. Os erros ensinaram muito aos brasileiros, e um deles foi entender que não se apagam incêndios com gasolina. 

 

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Bola fora: atraído pelo sorteio de carros e pelo show com artistas populares, o público

que participou da festa do Dia do Trabalho ficou alheio ao discurso político da inflação

 

Se porventura essa ideia do gatilho ganhasse eco na economia atualmente, as empresas teriam de aumentar salários a cada três meses, e aí sim aumentaria a expectativa inflacionária no mercado. Cresceria, ainda, a tentação do comércio e da indústria para reajustar preços e compensar os compromissos futuros, como os salários dos trabalhadores, fortalecendo a reindexação. E o País perderia, de vez, uma das conquistas mais importantes do Plano Real – um pacto de confiança silencioso, alcançado a duras penas, que substituiu o vício psicológico de governar regido pelo medo do futuro. “Seria como a ola do estádio: um começa a aumentar e o outro imita porque todos estão aumentando os preços e vão elevar os seus em algum momento”, diz o economista Guilherme Dietze, da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio).

 

O QUE É ISSO, COMPANHEIRO? Felizmente, durante a festa do 1º de Maio da Força Sindical, ficou evidente que a ideia de Paulinho não tem ressonância nem mesmo entre seus pares. Quando ele anunciou sua proposta de reajuste trimestral no palco, os sindicalistas que o ladeavam não escondiam um certo constrangimento. “É apenas uma maneira de chamar a atenção do governo para o assunto”, comentou um dirigente muito próximo do presidente da Força, que pediu para não ser identificado. “Mas todo mundo tem experiência de vida com esse assunto, não é?” A plateia do evento, por sua vez, formada em sua grande maioria por pessoas simples, que são efetivamente as que mais têm perdido poder de compra nos últimos 12 meses, estava completamente alheia ao assunto. 

 

Levantaram a mão, a pedido de Paulinho, quando ele perguntou se apoiavam o gatilho, mais por impaciência com os discursos políticos do que por convencimento. Afinal de contas, não se tratava de uma assembleia de classe, mas de uma festa do Dia do Trabalho, que atraiu o público com shows de artistas populares e sorteio de automóveis. Antes do presidente da Força, diversos líderes sindicais e autoridades que passaram pelo palco armado na festa da central tinham tentado chamar a atenção do público para o tema, mas nenhum deles entrou na conversa do gatilho. “O fantasma da inflação não pode voltar a rondar o Brasil”, disse Aécio Neves, senador tucano que vai se candidatar à presidência, tentando cativar os espectadores. Em vão.

 

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Aécio Neves (à dir.) reclama da inflação, mas não endossa o gatilho salarial.

Quem quer ver a máquina remarcadora de volta?

 

Melhor seria que as lideranças sindicais e políticas tivessem circulado entre as pessoas para saber o que elas efetivamente pensam sobre o assunto. “É, alguns preços sobem, mas outros caem”, disse à DINHEIRO a operadora de máquinas Maria Aparecida de Jesus, que trabalha numa metalúrgica na zona norte de São Paulo, quando questionada sobre o efeito dos atuais aumentos de preços no seu dia a dia. Essa também é a percepção de Evandro Lins da Silva, ajudante-geral numa transportadora. “Tem alterações de preço, às vezes tem queda”, afirmou. “Mas o Brasil está caminhando do jeito certo, crescendo a cada dia mais.” Lins da Silva e Maria Aparecida, na verdade, retratam um pouco do Brasil de hoje. 

 

Um levantamento divulgado na semana passada pelo instituto de pesquisa Datafolha aponta que o custo de vida é o principal temor de apenas 7% dos paulistanos. Para 45% da população de São Paulo, a maior preocupação atualmente é o envolvimento dos filhos com as drogas. Trinta anos atrás, no entanto, a inflação estava no topo da lista das dores de cabeça de todos os brasileiros em qualquer pesquisa de opinião. O que explica essa inversão de valores? As próprias centrais sindicais poderiam dar seu testemunho, pois elas ajudaram a formular uma equação que garante a reposição das perdas inflacionárias e um ganho real de salário. Quem recebe o mínimo atualmente tem garantida a reposição do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (maior que o IPCA), combinado com a variação do PIB de dois anos atrás. 

 

Em pleno emprego, ainda, os sindicatos se fortalecem nas barganhas por reajustes com seus patrões. Não é à toa que 95% das negociações salariais no ano passado resultaram em ganhos reais, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese). Não é por acaso, também, que apenas 7% dos paulistanos tenham receio de perder o emprego, como mostra a pesquisa Datafolha (veja quadro ao final da reportagem). O deputado Paulinho está tentando usar a inflação como instrumento de campanha, pois corre para tentar fundar um novo partido, o Solidariedade. Mas começou mal, dando um tiro no pé com o seu gatilho. Em reação ao seu discurso e ao de Aécio Neves, a presidenta Dilma Rousseff aproveitou o Dia do Trabalho para enaltecer, em cadeia nacional, tanto as conquistas para os trabalhadores – 3,9 milhões de empregos gerados em seus dois primeiros anos – como sua preocupação com o combate à alta de preços. 

 

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Cadeia nacional: em 1986, o presidente José Sarney anunciava o Plano Cruzado,

que trazia o gatilho salarial. Na semana passada, Dilma

celebrava 3,9 milhões de empregos

 

“(O controle da inflação) é uma luta constante, imutável, permanente”, disse Dilma, lembrando que não há a menor chance de descuidos nessa área. A presidenta esqueceu de avisar, em todo caso, qual é a receita para que isso aconteça. É certo que não existe espaço para fórmulas milagrosas, mas também não é possível fugir dos remédios amargos que o quadro atual requer. Os incômodos 6,59% de inflação já refletem um receio do brasileiro de ir às compras. O índice de confiança do consumidor da Fecomercio, por exemplo, registrou a terceira queda no mês de abril, alcançando 155,6 pontos (o índice varia de zero a 200). O indicador ainda está num patamar otimista (acima de 100), mas dá indícios de que as pessoas preferem se resguardar em relação a dívidas. 

 

“O governo terá de fazer escolhas”, diz Dietze. Aumentar os juros com mais vigor seria um dos instrumentos clássicos para diminuir o ímpeto inflacionário, mas isso iria contra uma das marcas do governo Dilma, que é exatamente a redução do custo do dinheiro. Outra alternativa seria controlar os gastos públicos, que representam um terço do PIB, para reduzir a pressão de demanda no mercado, algo pouco factível num ambiente de campanha eleitoral antecipada. A margem de manobra é estreita. Mas manter a guarda é bastante indicado para evitar que novas teses oportunistas sejam aventadas no mercado, deteriorando um pouco mais a confiança de empresas e consumidores no País. 

 

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