A história do mundo moderno se confunde com a das disputas em torno do petróleo. Desde a Primeira Guerra, quando o uso desse combustível determinou vencedores, a produção e a exploração do petróleo ditaram grande parte dos conflitos internacionais. A commodity tem a capacidade de alavancar ou dizimar economias inteiras. Por isso, a forte queda no preço do barril na última semana, que registrou a maior variação diária desde a Guerra do Golfo (1990), se traduz em um duro golpe aos países produtores, incluindo o Brasil. Com a cotação chegando à casa de US$ 30, os reflexos serão sentidos na economia brasileira como um dominó, começando pela queda no valor da Petrobras e chegando até a arrecadação de estados e municípios com os royalties — receita que encolherá até 20% sobre os R$ 53 bilhões de 2019.

“Apesar de a cotação internacional em baixa do petróleo reduzir o preço do combustível na bomba, esse tombo atinge diretamente serviços públicos”, afirma Augusto Penteado, economista e um dos autores da Emenda Constitucional que garante aos estados repasses com a venda do petróleo. A sensação de que petróleo barato significa melhora para o consumidor final é, porntato, ilusória. Em 2015, quando os preços encolheram metade do verificado agora, o estado do Rio de Janeiro foi submetido a um estrangulamento das contas públicas a ponto de não conseguir pagar a folha dos servidores. Desta vez, o atual governador fluminense, Wilson Witzel, já sinalizou o tamanho do problema que acomete o estado depois de o preço do barril cair 31% na segunda-feira 9: “É uma hecatombe!”, afirmou. O impacto anual caso os preços continuem em viés de baixa pode se r de R$ 8 bilhões, segundo a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Isso sem contar a Petrobras, que chegou a perder R$ 93 bilhões em valor de mercado na última semana, segundo a Economática.

O que causa essa instabilidade? O coronavírus (Covid-19) é o principal responsável. Com as companhias áreas cancelando voos, fábricas diminuindo horas trabalhadas e o mundo atento ao desempenho das economias diante da pandemia, a demanda por petróleo encolheu, tornando a produção atual maior que a demanda ­— e barateando o preço final. Diante desse impasse, os países que formam a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) consideraram diminuir a produção mundial, uma saída para manter os preços no patamar de antes do surto da doença. Tudo teria dado certo, não fosse a Rússia ter se negado a cortar a produção, abrindo uma guerra de preços com a Arábia Saudita, maior exportadora do mundo. “Essa tensão ampliou o ambiente de incerteza vinda do coronavírus e do risco de recessão global”, diz o analista chefe da SDF Petroleum Consultants, Joseph Gonzenbach.

SILÊNCIO: O presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, preferiu não se manifestar sobre a perda de valor da estatal, estimada em R$ 93 bilhões. (Crédito:Leo Correa)

Depois da negativa da Rússia, a resposta da Arábia Saudita foi realizar o maior corte de preço do petróleo em 20 anos. Nas últimas semanas, o país árabe reduziu entre US$ 4 e US$ 6 o valor do barril destinado à Ásia para entrega em abril e em US$ 7 os que irão para os Estados Unidos. Também anunciou o plano de elevar a produção acima de 10 milhões de barris por dia (bpd) em abril. Para tentar pressionar a Rússia a aderir ao corte sugerido, a Opep removeu todos os limites de extração da commodity, o que já derrubara a cotação do petróleo em 10% na sexta-feira 6 e cravou também a desintegração da Opep+, entidade que soma 24 nações e responde por metade do petróleo mundial. A aliança foi formada no final de 2016, quando países como Rússia, México e Cazaquistão decidiram atuar com a Opep para limitar a produção global e estabilizar o preço acima de US$ 60, mais ou menos a média de 2019.

“Com tudo isso, os preços do petróleo — que já estavam em trajetória de queda em meio ao avanço da pandemia do novo coronavírus — desabaram na segunda-feira”, diz o professor da USP, Silvio Maitner. De acordo com ele, um sinal da Arábia Saudita colocou ainda mais lenha nessa fogueira. “O país aumentou a aposta, ao dizer que poderia suportar preços do petróleo entre US$ 25 e US$ 30 o barril por até 10 anos.” Tal posicionamento exigiu reação russa, que afirmou poder usar o Fundo Nacional de Riqueza do país para estabilizar os preços baixos por tempo indeterminado. “Agora resta saber qual país vai aguentar mais”, afirma Heloísa Gusmão de Andrade, economista especialista em commodities. “Vale lembrar que a Arábia Saudita tem reservas significativas e extrai seu petróleo a custos de US$ 2,80 por barril , o que desafia qualquer concorrência”. Na contrapartida, Chris Weafer, da Macro Advisory, lembra que o fato da Rússia ter uma economia mais diversificada que a da Arábia Saudita pode dar mais capacidade de segurar os preços baixos. “A Rússia está em uma posição financeira muito melhor para resistir a uma guerra de preços do petróleo; possui reservas financeiras com US$ 80 bilhões a mais do que as da Arábia Saudita”, diz Weafer.

Toda essa tensão acontece enquanto o mundo tenta precificar o impacto econômico do coronavírus e, mais do que isso, admite-se a possibilidade de uma recessão global. Segundo Ernest Shwatzon, sócio da consultoria norte-americana Proxy Consulting, esse cenário todo terá forte impacto em economia de todos os portes, sendo mais evidente em países mais fragilizados economicamente, como o Brasil. “Mas a força desse estrago depende do tempo que essa tensão durar.” Há ainda a perspectiva de a guerra de preços corroer as economias dependentes de energia fóssil. “Também pode ser particularmente devastador para os países do Golfo, que representam um quinto da oferta mundial de petróleo e onde entre 70 e 90% da receita pública depende do petróleo”, diz Shwatzon. Além deles, países como Angola e Nigéria podem ter sérios problemas.

Nos Estados Unidos, a queda do preço pode afetar os produtores de xisto. “Muitas petroleiras americanas estão altamente endividadas. Dezenas delas fecharam as portas nos últimos anos, enquanto outras estão reduzindo seu pessoal”, afirma Shwatzon. Diante deste cenário, o Goldman Sachs cortou sua previsão para os preços do petróleo Brent para o segundo e terceiro trimestres de 2020 a US$ 30 o barril. Já a Agência Internacional de Energia (AIE), em nota, estima que a demanda mundial deve cair este ano, pela primeira vez desde 2009. Segundo a entidade, a demanda encolherá em 90 mil barris diários (bd) ante 2019. O diretor executivo da IEA, Fatih Birol, pediu que produtores sejam moderados. “Em um momento desses, de incerteza e potencial vulnerabilidade da economia global, jogar roleta russa com os mercados de petróleo pode ter consequências graves”, afirmou.

ARRECADAÇÃO BRASILEIRA No Brasil, a queda da cotação internacional provoca também uma diminuição brusca na arrecadação dos royalties sobre a produção, afetando a receita do governo federal e também das prefeituras e governos de estados produtores. O Orçamento deste ano enviado pela equipe econômica e aprovado pelo Congresso Nacional considerou o preço médio do barril de petróleo a US$ 58,96 — quase o dobro das mínimas registradas na segunda-feira 9. O Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) estima uma queda de R$ 20 bilhões na arrecadação do País com royalties e participações especiais, caso a cotação do petróleo caia para uma média de US$ 40 no ano.

Zanone Fraissat

A projeção anterior era de arrecadação na casa dos R$ 58,5 bilhões em 2020, considerando cotação média de US$ 71,25 para o barril. Com o barril a US$ 40 na média do ano, a projeção é que a arrecadação não ultrapsse R$ 40 bilhões. Confirmada a projeção, o valor representa uma queda de 26,7% em relação aos R$ 52,5 bilhões destinados aos cofres públicos em 2019. Com relação ao preço do combustível na bomba, o economista Armínio Talo avalia que dois caminhos podem ser tomados pela Petrobrás. O primeiro é reduzir o preço na bomba. O segundo, a elevação da Contribuição de Intervenção do Domínio Econômico (Cide), feita pelo governo, e que poderia garantir a rentabilidade da estatal e alguma compensação aos estados que perderão receita com a baixa dos royalties. Desde a greve dos caminhoneiros, em maio de 2017, a Cide está zerada para o diesel, mas soma R$ 0,10 por litro da gasolina. O mercado aguarda ansiosamente qual será o comportamento do governo frente a esse desafio.