15/06/2018 - 19:00
No início de junho, a empregada doméstica Maria Beltran foi à Plaza de Mayo, principal ponto de encontro das manifestações políticas da Argentina, para reclamar do preços dos itens da cesta básica. Ela se juntou a milhares de pessoas em frente à Casa Rosada, sede do governo federal, num protesto contra as medidas econômicas do presidente Maurício Macri. Moradora do subúrbio de Buenos Aires, Maria está desempregada e não sabe como vai pagar pela comida, as contas de luz e gás do mês.
“Agora não tenho como comprar nem pão todo dia”, afirmou à DINHEIRO. “A manteiga e a carne não param de aumentar.” Não se trata de uma queixa isolada. Os preços estão subindo com velocidade e acumulam uma alta de quase 50% em itens como os ovos, nos últimos 12 meses. A inflação elevada – fantasma que assombrou os brasileiros nos anos 1980 e no início da década de 1990 – é a face mais perversa da crise econômica que tomou o país e forçou o governo a buscar apoio no Fundo Monetário Internacional (FMI), uma estratégia que abalou a imagem da gestão Macri.

O protesto que contou com a presença da empregada doméstica foi apenas um dos vários contra o chamado tarifazo, a alta de preços iniciada pela administração atual na busca de reduzir os déficits públicos acumulados ao longo do governo populista de Cristina Kirchner. Esse efeito se somou mais recentemente aos repasses da elevação do dólar, que disparou devido ao movimento de fuga de investidores estrangeiros. No acumulado em 12 meses, o Índice de Preços ao Consumidor atingiu 26,3%. Como comparação, no Brasil, a inflação oficial marcou 2,9% no mesmo período. Além dos ovos, há altas expressivas em itens essenciais como carne (17,7%) e transporte (30%). Pelas ruas da capital, é comum encontrar relatos de argentinos que acompanham a mudança de patamar de preços nesses itens mais de uma vez por semana.
A situação econômica do país não é nada confortável. Os chamados déficits gêmeos, que incluem o resultado primário do governo (-3,5% do PIB) e as transações com o exterior (-5% do PIB), revelam fragilidades que contribuem para acentuar a depreciação da moeda num momento de alta de juros nos Estados Unidos. O peso argentino já perdeu cerca de 50% do seu valor neste ano, forçando o Banco Central a elevar os juros para 40% ao ano. Na quinta-feira 14, o presidente da instituição, Federico Sturzenegger, renunciou após um novo dia de forte desvalorização, admitindo a sua perda de credibilidade para lidar com a crise. Ele será substituído pelo Ministro das Finanças, Luis Caputo.

Para evitar o risco de uma fuga descontrolada de recursos, o governo buscou um empréstimo de US$ 50 bilhões com o FMI. “Vai ser um grande acordo para os argentinos”, afirmou Macri, após encontro recente com a diretora-executiva do fundo, Christine Lagarde, na cúpula do G7, no Canadá. “Ajudará a fortalecer o desenvolvimento e a criação de empregos.” Embora gere um colchão de credibilidade nos mercados, a opção arranha a imagem de Macri. Seus índices de aprovação caíram de 42,7% em abril para 31,0%, após o anúncio do acordo, segundo pesquisa dos institutos Taquion e Trespuntozero.
Por trás do desconforto dos argentinos está a memória das consequências causadas nos acordos do FMI no início dos anos 2000, quando o país acabou dando o calote e mergulhando num longo período de dificuldades. Somente após uma década, quando Macri pagou o que ainda restava da dívida, é que a Argentina voltou a acessar os mercados internacionais para financiamento. As emissões recentes de dívida externa, porém, deixaram o país mais frágil e jogaram o governo de volta aos braços do FMI. Como contrapartida do empréstimo atual, o fundo impôs novas medidas de austeridade, exigindo a redução das metas do déficit fiscal para os próximos três anos, distribuídos ao longo de 36 meses (leia quadro ao final da reportagem). “O valor acordado é onze vezes maior do que a cota argentina, o que implica forte apoio da comunidade internacional à Argentina”, afirmou o ministro das Finanças, Nicólas Dujovne.

O risco do quadro atual é de que o aumento de preços e a alta dos juros afetem o consumo, arrastando para baixo as atividades do setor de serviços e da indústria, com impactos negativos no emprego. Foi assim que Maria perdeu sua posição. Com a carestia generalizada, as casas nas quais ela fazia faxina não conseguem mais contratá-la. A empregada doméstica critica especialmente o fim dos subsídios federais. “Com Cristina Kirchner era caro também, era ruim, mas agora está pior.” Os altos gastos governamentais do período Kirchner (2003-2015) são apontados como uma parte da explicação para os índices atuais de preço. Entram na conta também a depreciação do peso e o histórico de décadas de inflação, que faz com que empresários aumentem os preços periodicamente na expectativa de que toda a economia também aumente – a chamada inflação inercial.
A alta frequência de reajustes revive o temor de que a inflação saia de vez do controle. “Com o choque inicial do corte dos subsídios no início do governo Macri, a inflação passou dos 40%”, diz Gustavo Segré, economista argentino e sócio da consultoria Center Group. “Mas o mercado se autorregulou e os preços voltaram ao normal.” Por hora, a opção do governo é utilizar o dinheiro do FMI para diminuir a emissão monetária e tentar controlar a dívida. Isso não significa necessariamente um alívio ao bolso dos argentinos. “Serão necessários quatro anos para controlar a inflação”, afirma João Pedro Bumachar, economista do Itaú Unibanco. “É algo que irá demorar mais do que o mandato de Macri.” Isso aumenta as dificuldades de reeleição no ano que vem.

(à esq.), pediu demissão após uma nova onda de desvalorização do peso. Ao seu lado, o ministro das Finanças, Nicólas Dujovne, que negociou com o FMI (Crédito:AFP Photo / Eitan ABRAMOVICH)
Diante do quadro adverso, as perspectivas para o crescimento da Argentina passaram por uma onda de revisões. O FMI reduziu de 3,2% para 2,0% a expectativa para 2018. Já o Itaú Unibanco calcula um crescimento de 1,5%. A consultoria Capital Economics, mais pessimista, prevê recessão de 0,5%, ante expectativa anterior de crescimento de 2,5%. “O crescimento da Argentina definitivamente não será o que esperamos em 2018”, afirma Martin Berard, presidente da siderúrgica Ternium na Argentina. “O terceiro trimestre promete ser bem complicado.” O clima de insatisfação é intenso. Caminhoneiros iniciaram uma greve na quinta-feira 14, a exemplo da paralisação brasileira, cruzando os braços em diversas estradas da Argentina. A Confederação Geral do Trabalho (CGT) anunciou para o fim do mês uma greve geral de um dia. Além do fim dos tarifazos, o tema será um clamor para conseguir reajustes salariais equivalentes à inflação.
RELAÇÃO BILATERAL Para empresas brasileiras, ainda é cedo para calcular os efeitos da situação econômica. As exportadoras com forte vínculo com a Argentina certamente serão afetadas. O país é o principal destino das vendas externas de veículos brasileiros. A Volkswagen prefere enxergar as oportunidades que se abrem no meio do cenário conturbado. “A inflação encareceu a produção em pesos, mas a deixou mais competitiva em dólares”, afirma Pablo Di Si, presidente da Volkswagen para a região da América Latina. O efeito pode favorecer as vendas da Argentina para outros mercados. Na fábrica de Córdoba, por exemplo, 95% da produção é exportada. “Em toda a Argentina, 60% da produção é voltada para exportação.”
O empresariado de modo geral tem uma ideia muito clara: os dois países dependem um do outro. E, se um for mal, o outro também irá. “Somos hermanos e estamos condenados a estarmos juntos”, diz Gustavo Grobocopatel, presidente do Grupo Grobo, um dos maiores produtores de trigo e soja da Argentina. No setor financeiro, a perspectiva é de que o problema não passará com um passe de mágica, mas de que uma solução é possível. “No longo prazo, esses dois países têm tudo para se recuperar, seja pela agricultura, seja pelas commodities”, afirma Octavio de Lazari Jr., presidente do Bradesco, que participou do Seminário Interna-cional Líderes, em Buenos Aires, no dia 1 de junho. “Independente da volatilidade, os dois países sabem exatamente o dever de casa que tem que ser feito.” O desafio de Macri será evitar que uma queda forte de sua popularidade inviabilize as necessárias medidas econômicas.