24/06/2016 - 20:00
As companhias aéreas brasileiras tornaram-se, nos últimos anos, especialistas em prejuízos. Somente em 2015, Gol, Tam, Avianca e Azul contabilizaram, juntas, perdas de R$ 5,9 bilhões, o pior resultado financeiro da história, pelos cálculos da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Entre os especialistas do setor, a dúvida que dominava os debates não era quando as empresas encontrariam o lucro, mas sim quanto tempo elas aguentariam no vermelho antes de ter o mesmo destino de Varig, Vasp e Transbrasil. Uma das razões apontadas pelas próprias companhias para esse desempenho tão ruim – além da óbvia carga tributária, infraestrutura sucateada e intensa volatividade no câmbio – era o excesso de interferência do governo, que limitava, entre outras coisas, a participação de capital estrangeiro em 20%. Na terça-feira 21, uma decisão da Câmara dos Deputados veio melhor que a encomenda e pode redefinir o mapa aéreo do Brasil. Em vez de ampliar para 49% o teto de participação de gringos, como reivindicava o setor, por 199 votos a favor e 71 contra, foi aprovada uma medida provisória que retira qualquer restrição para que estrangeiros possam assumir cargos de direção e o controle acionário de empresas aéreas brasileiras. As companhias de fora, na prática, poderão deter 100% das ações, enterrando de vez a ideia de ter uma aérea nacional puro-sangue – algo que, em todo o mundo, está em extinção. A tradicional estatal Alitalia tem os árabes da Etihad como sócios em 49%. A espanhola Iberia é controlada pelos britânicos da British Airways. A Air France se uniu aos holandeses da KLM. Por aqui, a proposta ainda precisa ser votada no Senado e sancionada pelo presidente Michel Temer antes de entrar em vigor, mas deve passar sem muita resistência. “Trata-se de uma grande oportunidade para as aéreas brasileiras saírem do sufoco e para os investidores comprarem barato”, afirma Marcelo Cambria, especialista em aviação e professor de Finanças da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap). “Com um endividamento brutal, receitas em reais e gastos em dólar, sobram poucas alternativas para as companhias brasileiras.”
Com a decisão, todos ficaram felizes, certo? Não é bem assim. A medida provisória surpreendeu até mesmo aqueles que defendiam a flexibilização das restrições aos estrangeiros, sob o argumento que haveria mais capital às empresas e mais investimentos. O presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), Eduardo Sanovicz, disse que abrir complemente o setor aéreo, sem levar em conta outros problemas fundamentais da aviação comercial, poderá ser nocivo às empresas, em vez de incentivar a competição e os investimentos. “O acirramento da competição poderá reduzir a capacidade das companhias”, afirma o executivo. Ele se refere, por exemplo, à distorção de custos entre as aéreas brasileiras e estrangeiras. Nos Estados Unidos, por exemplo, as despesas com querosene representam 27% do custo operacional das aéreas. No Brasil, passa de 40% diante do monopólio da Petrobras, alta cobrança de ICMS nos Estados e, acredite, até taxa de 1,5% para renovação da frota da marinha mercante, cobrada desde os anos de 1970. “Sem equacionar esses absurdos, tal medida de abertura ao capital estrangeiro será inócua e, mais do que isso, criará um ambiente de negócios ainda mais hostil.”
O presidente da Azul Linhas Aéreas, Antonoaldo Neves, também recebeu com “estranheza” a decisão da Câmara dos Deputados. Embora seu chefe, David Neeleman, fundador e CEO da companhia, já tenha declarado à DINHEIRO que “quanto menos intervenção do governo, melhor para o setor”, Neves acredita que a medida é um “remédio errado para um setor doente”. “Não faz sentido a tese de que falta capital estrangeiro paras as companhias aéreas brasileiras”, diz o executivo. “No ano passado, só a Azul conseguiu US$ 550 milhões com a entrada dos sócios chineses da HNA e mais de US$ 300 milhões em financiamento para compra de aeronaves.” Para ele, o Brasil nunca terá uma low cost, nos moldes da irlandesa Ryan Air, se não reduzir o custo de operações. “Como brasileiro, fico decepcionado com uma decisão como essa. Não se ganhará nada com isso”, garante o presidente da Azul. A Avianca Brasil, que defendia a ampliação do capital estrangeiro para até 49%, também criticou a abertura completa do mercado, mas sem explicar suas razões.
Para o consumidor, que espera uma queda nos preços, um eventual escancaramento do setor não deve surtir efeito no curto prazo, já que as margens das companhias aéreas, segundo as empresas, estão no limite. “Em dólar, as tarifas brasileiras já são as menores do mundo”, afirma Neves, da Azul. “Qualquer empresa que venha a competir, terá de bancar os mesmos custos, o que impede um barateamento ainda maior.” No longo prazo, entretanto, o aumento da concorrência pode significar a diminuição das tarifas.
As duas maiores empresas de aviação do País, a Gol e Tam, viram com bons olhos a possibilidade de extinção dos limites de participação para os estrangeiros, posição contrária ao da própria associação que os representa, a Abear. A Tam, que passou a se chamar Latam neste ano, após a conclusão do processo de fusão com a chilena LAN, se manifestou por meio de nota oficial. Informou que “é favorável ao capital estrangeiro nas companhias aéreas, pois esse é um setor que exige capital intensivo, e essa medida estimula o crescimento, gerando riqueza para o nosso país.” Já a Gol, a mais endividada empresa do setor aéreo e que está em processo de renegociação com credores, preferiu não se manifestar oficialmente sobre a decisão da Câmara, mas sabe-se que, nos bastidores, a possibilidade de receber aportes de novos sócios foi comemorada nos corredores da sede da empresa, em São Paulo. “A beleza de não ter restrição é a liberdade. Quanto mais o governo descomplicar, maiores são as chances de nos recuperarmos”, afirmou um alto executivo da Gol. “Além do setor de mídia, a única atividade que ainda resistia a essa ideia nacionalista era o da aviação, o que não faz sentido nos dias atuais”. Atualmente, a americana Delta detém participação de 10% do capital da Gol, assim como a franco-holandesa Air France-KLM detém fatia de 1,5%.
Sob a ótica dos estrangeiros, evidentemente, a chance de comprar até 100% de aéreas brasileiras ou operar no País sem restrições legais é motivo de aplausos. O presidente da espanhola Air Europa no País, Enrique Martín-Ambrosio, acredita que o setor terá, nos próximos anos, mais acesso a crédito e receberá mais investimentos. A empresa está empolgada com o mercado brasileiro, já que sua rota São Paulo-Salvador-Madri, com taxa de ocupação superior a 95%, registrou o maior crescimento em número de passageiros entre todos os voos operados pela empresa no mundo neste ano. “A abertura dará mais transparência às empresas aéreas brasileiras, o que será fabuloso para toda a indústria do turismo”, afirma o executivo. Para ele, o turismo no Brasil é mal explorado, em partes, em decorrência da ausência de voos diretos em várias regiões. “É difícil de acreditar como a ilha espanhola de Palma de Maiorca, com apenas 1 milhão de habitantes, recebe 12 milhões de turistas por ano, e o Brasil, com 200 milhões de pessoas, recepciona a metade disso”. Então, a Air Europa vai investir por aqui? “Depois que o Senado aprovar, estaremos de olho nas oportunidades”, diz Martín-Ambrosio.