28/06/2013 - 21:00
Menos traumática do que a venda de indulgências, que provocou um escândalo na Igreja nos séculos XV e XVI e levou à Reforma Protestante, a inquisição nas contas do Instituto para as Obras da Religião (IOR), nome oficial do Banco do Vaticano, prossegue em um ritmo destoante da letargia eclesiástica. Na quarta-feira 26, o papa Francisco nomeou uma comissão para examinar as contas da instituição financeira que administra ativos de € 7 bilhões, 100 funcionários e cerca de 21 mil clientes, 68% deles sacerdotes espalhados ao redor do mundo. A comissão tem cinco integrantes, sendo dois cardeais – o francês Jean-Louis Tauran, que anunciou a eleição do argentino Francisco, em março, e o italiano Raffaele Farina, ambos especialistas nos documentos sigilosos do Vaticano.
Papa Francisco: chega de abençoar
transações pecaminosas
Outros membros são Juan Ignacio Arrieta Ochoa de Chinchetru, bispo basco filiado à Opus Dei e especialista em direito canônico, o monsenhor americano Peter Bryan Wells, e Mary Ann Glendon, advogada americana, professora de direito em Harvard e ex-embaixadora na Santa Sé. Mary Ann Glendon é uma escolha surpreendente em uma instituição quase integralmente masculina, mas seu alinhamento com a Igreja é total. Republicana linha-dura e ferrenha militante anti-aborto, a advogada deverá trazer um muito necessário conhecimento jurídico para investigar uma instituição que, ao longo de sua história, frequentemente caiu em pecado. Segundo Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, o estabelecimento da comissão reflete “o desejo do Santo Padre de obter uma compreensão melhor da situação jurídica e das atividades do banco, de maneira a obter mais harmonia com a missão da Igreja”.
A relação da Igreja com o dinheiro sempre foi complicada. No entanto, os problemas se aceleraram desde que o papa Pio XII criou o banco, em plena Segunda Guerra Mundial. O IOR aparece periodicamente como protagonista de escândalos cabeludos. Ele não concede empréstimos, mas administra recursos do Vaticano e de ordens religiosas e associações de caridade católicas, além de cuidar das prosaicas contas-correntes dos funcionários do Vaticano e de aposentados e pensionistas. A gestão das finanças está longe de ser canônica. Nos anos 1980, o banco milanês Ambrosiano faliu após ter desviado US$ 1,3 bilhão dos depositantes,através de empréstimos fraudulentos, muitos deles para empresas de fachada operadas pela máfia italiana.
“O papa quer entender a situação jurídica e das atividades do banco”
Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano
O Banco do Vaticano, então presidido pelo cardeal americano Paul Marcinkus, era um dos maiores acionistas do Ambrosiano. A penitência foi dura: na época, o papa João Paulo II teve de abençoar um cheque de US$ 239 milhões para indenizar os credores lesados. Em 2010, no mais recente escândalo, US$ 30 milhões em ativos foram ameaçados de congelamento pelas autoridades italianas. Na ocasião, Ettore Gotti Tedeschi e Paolo Cipriani, presidente e diretor-geral do IOR, foram acusados de permitir que a máfia italiana santificasse dinheiro sujo por meio de contas sem identificação. A investigação não avançou, mas Tedeschi foi demitido em maio de 2012.
No fim de fevereiro deste ano, em um de seus últimos atos, Bento XVI nomeou o advogado e aristocrata alemão Ernst von Freyberg para presidir o banco. Recrutado com o auxílio de um escritório de headhunting, o novo presidente – o primeiro não italiano no cargo – é um antípoda de seus antecessores, em geral banqueiros italianos com fortes vínculos empresariais e políticos, nem sempre muito transparentes e virtuosos. Ele apenas começou a colocar as contas em ordem. Em maio, von Freyberg declarou que o banco estava investigando sete operações suspeitas, ante seis em 2012 e apenas duas em 2011. Agora, Francisco contará também com os trabalhos da Comissão.
A presença de Glendon não será a única novidade. Seus membros terão acesso sem intermediários ao papa, em uma tentativa de driblar a burocracia vaticana, tida como incompetente e corrupta. O ato de contrição promete ser longo. Em julho de 2012, um relatório da Moneyval, agência de fiscalização do sistema financeiro que se reporta à Comissão Europeia, declarou que o Banco do Vaticano havia conseguido avanços nos últimos anos, mas ainda tinha um longo caminho a percorrer para cumprir as exigências internacionais. Prova de que Jorge Bergoglio, o papa Francisco, terá de rezar – e muito – antes de ter certeza de que a parte de César e a parte de Deus estão sendo bem administradas.