18/09/2015 - 20:00
O mais longevo governo do período democrático argentino está chegando ao fim. O mandato de 12 anos do casal Kirchner pode ser comparado à obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Enquanto a obra é dividida entre inferno, purgatório e paraíso, os governos de Néstor e Cristina foram marcados por medidas que levaram o País ao “céu”, com ações populistas e multilateralismo, e ao inferno, com uma economia protecionista, calote internacional e distanciamento de potências mundiais.
Agora, a dinastia kirchnerista está perto do fim. No dia 25 de outubro, os argentinos irão às urnas decidir quem ocupará a cadeira de Cristina, que sucedeu o marido Néstor, morto em 2010. O sufrágio não representa apenas a oportunidade de os argentinos renovarem o governo. Do outro lado do Rio da Prata, empresários brasileiros, que têm no país o terceiro principal destino comercial, com um pico de US$ 40 bilhões em 2012, esfregam as mãos. “De uma coisa eu estou certo: os três candidatos pretendem melhorar as relações com o Brasil”, diz Alberto Alzueta, presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira.
Embalado pelo resultado das eleições primárias realizadas em agosto, que definiram oficialmente os candidatos que irão concorrer ao comando da Casa Rosada, o atual governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, da legenda Frente para a Vitória, partido da Cristina, continua com uma leve vantagem nas pesquisas de intenção de voto. Os outros principais adversários são o também peronista, Sergio Massa, do +A15, e o atual prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, da aliança de centro-direita Mudemos-PRO.
Nas primárias, Scioli conquistou 37,7% dos votos, Macri, 30,8%, e Massa, 20,7%. Se o resultado de agosto se repetir no mês que vem, ainda que com vantagem dos adversários, Scioli não conseguiria a maioria necessária para vencer as eleições no primeiro turno, o que deixaria a decisão final para novembro. Detalhe: diferentemente da regra brasileira, que prevê maioria simples para um candidato vencer no primeiro turno, na Argentina o candidato que obtiver 45%, ou, 40% dos votos e 10 pontos de vantagem em relação ao segundo, leva a eleição na primeira etapa.
Embora ainda seja difícil prever o resultado que emergirá das urnas, os argentinos estão certos de que, independentemente de quem vencer, o país contará com mudanças consideráveis na condução da política econômica. Segundo o coordenador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais do Ibmec-RJ, Leonardo Paz Neves, os três principais candidatos discordam da política atual. Naturalmente, Scioli é o menos crítico. No entanto, o governador de Buenos Aires já sinalizou que, se necessário, negociará com as potências mundiais.
“Qualquer um dos três vai falar mais com o cenário internacional”, afirma Neves. “A questão é em que grau isso vai acontecer.” As condições precárias do legado de Cristina dificultam ainda mais a missão do próximo mandatário. Com a inflação anual de 27% e projeção negativa de crescimento do PIB, em – 2,8%, o novo presidente terá de construir uma agenda de ajuste fiscal contundente para retomar o crescimento do País. Apesar da troca de comando, as expectativas para 2016 continuam preocupantes, com as reservas internacionais caindo sistematicamente, depreciação da moeda em termos reais de 20% e inflação de 35%.
Segundo Juan Carlos Barboza, ex-economista do Banco Central de la República Argentina e atual responsável pela área macroeconômica de Argentina, no Itaú-Unibanco, o maior desafio será a questão do financiamento das contas públicas com organismos internacionais. “Como a Argentina não cumpriu acordos com órgãos mundiais, as relações com os mercados internacionais estão limitadas”, diz Barboza. Com forte apelo popular, Scioli tem como desafio eleitoral agradar os que estão cansados do populismo econômico, sem perder os votos dos que ainda apoiam o governo Cristina.
Na vida política desde 1997, a convite do ex-presidente Carlos Menem, o candidato é ex-piloto de mononáutica, uma corrida de alta velocidade com lanchas que lhe custou o braço direito durante um acidente, em 1989. Sua história de superação transformou-se em um traço de sua personalidade e marketing político. Governador de Buenos Aires desde 2007, Scioli também foi vice-presidente no governo Néstor Kirchner, de 2003-2007. Favorito nas eleições de 2015, o candidato recebeu, no início de setembro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lhe declarou apoio.
Em seu discurso, Scioli promete algumas mudanças. “Investimento e inovação, essa é a grande agenda do futuro”, disse. Na oposição, Macri, de Mudemos PRO, e Sergio Massa, do +A15, tentam, a todo custo, levar a disputa para o segundo turno. Empresário e graduado em engenharia, Macri conta com uma agenda mais liberal, com promessas de tornar o câmbio flutuante, estreitar relações com o Mercosul e países do Pacífico, assim como recuperar a confiança e a credibilidade da Argentina. Trata-se de um caminho totalmente oposto ao atual.
“A partir de dezembro, trabalharemos juntos para acabar com a pobreza, narcotráfico e unir toda a população”, disse o candidato, em Buenos Aires. Já o advogado Massa, peronista dissidente e ex-chefe de gabinete do governo de Cristina, de 2008 a 2009, foca sua campanha em questões sociais e crava suas principais propostas no âmbito da educação. “O kirchnerismo não acredita nas estatísticas. Avalia tudo a olho nu: a economia, a segurança e a educação”, afirmou, durante a corrida presidencial. “A educação pública era de qualidade. Agora é apenas gratuita.”
Por mais incerto que seja o cenário político da Argentina, empresários brasileiros já encaram 2016 com otimismo. Ansiosos pela saída de Cristina do poder, eles esperam uma melhora no diálogo comercial entre os países, bem como o fortalecimento do Mercosul. Para Alzueta, da Câmara de Comércio Argentino Brasileira, a deterioração na relação dos dois países se deu pelo enfraquecimento da economia dos nossos vizinhos. Quando a Argentina se viu sem reservas, a reação de Cristina foi limitar as importações, priorizando os produtos essenciais, o que refletiu diretamente no setor automobilístico, principal exportador brasileiro à Argentina.
Enquanto em 2012, a troca comercial total entre os países foi de US$ 40 bilhões, a previsão é de que feche em apenas US$ 28 bilhões, em 2015. “Tanto Scioli, quanto Macri e Massa entendem que, com o Brasil, a Argentina tem um peso no mundo e, sem o Brasil, não é nada”, diz Alzueta. Uma das empresas que sofreram com as barreiras da importação e com a crise econômica do vizinho do Prata foi a gaúcha Marcopolo, fabricante de carrocerias de ônibus urbanos e rodoviários, que registra queda de 70% no volume de produtos enviados à Argentina nos últimos quatro anos.
Seus negócios só não despencaram porque a empresa tinha produção local. “A situação só não foi pior porque conseguimos adequar o montante exportado com o que produzimos localmente”, afirma Ricardo Portolan, gerente de exportação da Marcopolo. A chegada de um novo governo, no entanto, traz uma ponta de esperança à companhia. “Entendo que o novo presidente fará um movimento para retomar as relações internacionais”, diz o executivo.