O brasileiro ainda começava a engrenar a volta ao trabalho depois de rasgar a fantasia no Carnaval País afora quando, em plena quarta-feira de Cinzas, assistiu ao então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta anunciar oficialmente o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. Era um homem de 61 anos, internado no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, que acabara de voltar de uma viagem à Itália. O calendário apontava 26 de fevereiro de 2020. Passados 12 meses, praticamente tudo mudou. Na semana que marcou a lembrança do primeiro aniversário da chegada do vírus em solo nacional, o Brasil atingiu a triste marca de 250 mil óbitos e mais de 10 milhões de casos. Significa dizer que 5% da população brasileira enfrentou a doença em um ano. Pelo ritmo até aqui, levando em conta os 365 dias percorridos sob a pandemia, seria como se um estádio do Pacaembu lotado se contaminasse com o vírus todo dia. Ou se, diariamente, caíssem dois aviões Boeing 770 com todos os assentos ocupados em solo brasileiro. São 12 meses de uma tragédia sem precedentes. E nem de longe o ritmo de vacinação acompanha essa velocidade. Com 6 milhões de imunizados até agora, o Brasil ainda não tem 3% da população vacinada.

Mas se é para apontar algo positivo nessa fase foi a ajuda vinda do recurso privado. Com pouca agilidade do governo federal em criar condições para a sobrevivência de famílias impactadas diretamente pela crise sanitária, e que se tornou econômica, coube em parte a executivos liderar ações de combate à pandemia. O que, de certa forma, também contribuiu para a manutenção dos próprios negócios. Já que preservar a saúde da população é também garantir a saúde da força de trabalho. Legítimo, em se tratando de manutenção de empregos ante uma realidade em que a taxa de desemprego atingiu índices históricos, com mais de 14 milhões de brasileiros nas filas para disputa por vagas. E o empresariado doou.

Um recorte que consolida essas ações solidárias está no Monitor das Doações Covid-19, organizado pela Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR). Somando tudo que foi distribuído, de pessoas físicas a jurídicas, a cifra da solidariedade alcançou R$ 6,5 bilhões. Desse montante doado, 84% (R$ 5,5 bilhões) têm como origem as companhias – sendo 28% do total de empresas do sistema financeiro. Foram compradas milhares de máscaras, equipamentos de proteção individual em geral para profissionais de saúde, respiradores, cilindros de oxigênio, doação em serviços de capacitação e até construções de hospitais, incorporados ao sistema público de saúde.

PREVENÇÃO E PESQUISA O Todos pela Saúde, do Itaú, teve aporte de R$ 1,2 bilháo, destinados à compra de testes rápidos, distribuição de 14 milhões de máscaras, além de verba para a Fiocruz e Instituto Butantan. (Crédito:Divulgação)

E é do segmento bancário a contribuição mais vultosa, a campanha Todos pela Saúde, liderada pelo Itaú. O maior banco privado do País, que registrou lucro de R$ 18,5 bilhões em 2020 (queda de 34,6% sobre 2019), formalizou uma doação de R$ 1,2 bilhão em um pacote de ações. Entre os cinco maiores doadores aparecem na sequência Vale (R$ 500 milhões), JBS (R$ 400 milhões), Cogna (R$ 267 milhões, com base no monitor de doações – a companhia diz que o número atualizado é de R$ 325 milhões) e Claro (R$ 153 milhões). O total vindo da iniciativa privada em 2020 é quase o dobro do que se costuma ser empregado anualmente na filantropia. Segundo dados do Censo Gife 2018, foram R$ 3,25 bilhões naquele ano, dos quais 52% por institutos e fundações empresariais e 13% diretamente por companhias. No censo de 2016, a soma chegou a R$ 2,9 bilhões.

E AGORA? A questão que fica é que, passados os 12 meses mais impactantes da doença no Brasil, ainda que a população tenha voltado a sofrer com o aumento dos casos nas últimas semanas, como será a partir daqui? É possível fazer com que a solidariedade torne-se, para as companhias, uma espécie de ‘política de estado’? Para Márcia Woods, presidente da ABCR, é possível sim. A atitude privada em 2020 mudou o patamar. “Foi uma resposta contundente das empresas à maior crise sanitária no País”, disse. O tíquete médio de doação foi muito acima do normal, que fica entre R$ 20 milhões e R$ 50 milhões ao ano. “Isso mostra que o brasileiro é solidário. Faltava o hábito de fazer isso de forma recorrente.”

Paula Fabiani, presidente do Instituto do Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), acredita que ações das empresas também estimulam práticas do voluntariado entre os próprios colaboradores. “A pandemia provocou esse engajamento filantrópico maior. A população hoje cobra essas iniciativas. A empresa precisa dar lucro e gerar valor para a sociedade”, afirmou. Isso justifica ações empresariais com efeitos de longo prazo. A Ambev com a Gerdau usaram parte de suas doações para a construção de um anexo do hospital M’Boi Mirim, em São Paulo, que garantiu 100 novos leitos e custou R$ 13,5 milhões. Para Carla Crippa, vice-presidente de Relações com a Sociedade da Ambev no Brasil, é necessário a continuidade das ações de apoio mesmo após um ano de pandemia. “Vamos continuar olhando para o negócio e pensando em como podemos ajudar”, afirmou.

Claudio Gatti / Divulgação

O Todos pela Saúde, do Itaú, foi destinado, entre outras ações, para compra de 5 milhões de testes rápidos, 14 milhões de máscaras descartáveis, 105 mil oxímetros para 5 mil municípios e estudos para mapeamento da doença. A superintendente de Relações Institucionais, Sustentabilidade e Negócios Inclusivos do banco, Luciana Nicola, entende que a ação, ainda em curso, contribui para diminuir o peso da gestão pública de saúde. “Deixa vários legados como a transferência de conhecimento de gestão de hospitais, além de contribuições para as fábricas de vacinas da Fiocruz e do Instituto Butantan”, afirmou. Além dessa ação, o Itaú, com Bradesco e Santander, aportou R$ 80 milhões para a compra e distribuição de máscaras de tecido.

Os R$ 400 milhões doados pela JBS, pelo programa Fazer o Bem Faz Bem, contribuíram para reforma de hospitais em sete estados, com mais de 1,8 mil leitos entregues, doações de 1 milhão de litros de produtos de higiene e limpeza, respiradores, ambulâncias, mais de 500 mil máscaras, entre outros. Fernando Meller, gestor do programa na JBS, concorda sobre a doação privada ter entrado em outro patamar e acredita que iniciativas sociais serão ainda mais intensificadas neste ano. “A gente aprendeu, como sociedade, a importância do papel social das empresas”, disse. “Vamos seguir com as iniciativas e fizemos questão de envolver e engajar nossos colaboradores.”

Outro ponto positivo, e cujo impacto é menos mensurável, acontece quando o core da operação deixa um legado para quem recebe a doação. Um exemplo é a Cogna, que disponibilizou cursos gratuitos. Segundo a companhia, impactaram 2,7 milhões de pessoas. “Não é possível avançar sem olhar para o próximo. Criou-se uma ampla corrente de empatia”, disse Juliano Griebeler, diretor de Relações Institucionais, Governamentais e Impacto Social do grupo educacional. Na mesma linha agiu a presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza, Luiza Helena Trajano. Ela liderou iniciativas para ajudar pequenos empreendedores, atingidos diretamente pela crise. Nas últimas semanas, também lançou uma campanha para que via setor privado 160 milhões de brasileiros possam estar imunizados.

ALIANÇA DE EMPRESAS Ambev e Gerdau construíram um anexo do Hospital M’Boi Mirim, em São Paulo, com 100 novos leitos. (Crédito:Divulgação)

O ano marcado para sempre na história pela doença, será também o do mergulho ao digital de quem ainda estava à margem. Em 2020, cerca de 20 milhões de pessoas passaram a fazer compras on-line pela primeira vez, segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm). E a própria transformação digital que sustentou boa parte do varejo contribuiu para a amplificação da filantropia. Rodrigo Bandeira, vice-presidente da Abcomm, disse que a internet foi usada naquilo que é uma de suas principais iniciativas, que é conectar e ajudar pessoas. “Doações on-line ganharam força. Esse é o caminho”, afirmou.

Do outro lado da ponta da doação, a voz que se ouve é da necessidade da manutenção do apoio. Para Edu Lyra, CEO e fundador da organização social Gerando Falcões, se o comprometimento empresarial ficar restrito a ações pontuais, o Brasil corre o risco de se tornar inviável. “A Covid colocou uma lente de aumento sobre os problemas que estavam invisíveis na sociedade”, afirmou. “Hoje todo mundo sabe que existem mais de 7 mil favelas, que a pobreza nesse estrato é extrema e que muito não têm seu direito, como cidadão, de ter um CEP e saneamento básico.” Para Lyra não dá para ser omisso. “Isso pauta as empresas para buscar uma agenda de longo prazo”, afirmou. Na avaliação dele, não se trata de escolha ou liberalidades das empresas. Trata-se de necessidade real.

O criador da Gerando Falcões entende que a doação recorrente é a garantia de que o Brasil pode superar a crise. Ele se surpreendeu com o volume de doação registrado em 2020. “Mas eu ficaria mais orgulhoso com meu país e com a iniciativa privada se esse número pudesse ser repetido ano a ano, na próxima década”, disse. Márcia Woods, da ABCR, também vê no 2020 um momento de ruptura e enxerga que o próximo passo é que os recursos saiam diretamente do lucro líquido, do bolso propriamente dito dos acionistas. “Talvez esse seja o salto seguinte no Brasil e ver isso de fato como responsabilidade social”, disse ela. “Não dá para ter prosperidade em terra arrasada. Se isso ajuda a reputação da marca, é legítimo expressar esses valores por meio da solidariedade.” Um ônus a mais para a iniciativa privada? Sim e não. Porque o próprio consumidor tende a ser mais fiel a marcas que se mostrem mais solidárias. Ou, como diz Lyra, “é muito mais caro para o Brasil não doar do que doar”, afirmou.

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