15/01/2016 - 20:00
Acabou a festa do mercado imobiliário. No início da década, a conjunção entre aumento da renda, expansão do crédito e juros camaradas fez explodirem as vendas de imóveis novos em todo o Brasil. Hoje, muitos lançamentos que fizeram a alegria de compradores e corretores nas capitais e nas cidades médias estão se tornando pesadelos para quem perdeu poder aquisitivo com a crise e enfrenta o desafio de renegociar suas dívidas. Como você leu na reportagem “Construtoras em apuros”, a palavra que vem causando pesadelos nas incorporadoras é “distrato”, o ato pelo qual o comprador de um imóvel na planta desiste da aquisição e solicita a devolução do dinheiro já pago.
No início do ano, a agência de classificação de riscos Fitch realizou um levantamento junto a nove incorporadoras. Os resultados foram assustadores: a taxa de devolução dos imóveis vendidos na planta chegou a 41%. Ou seja, dois em cada cinco compradores não conseguiram arcar com as despesas. “Os distratos chegaram a um pico, se subirem mais, esse movimento poderá ameaçar até a saúde financeira do setor”, diz o consultor Luiz Antonio França, ex-presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).
Quem investiu em imóveis milionários e está com esse problema na mão precisa ter, antes de tudo, muita calma nessa hora. Para entender a lógica do distrato é preciso observar a maneira como um imóvel novo é comercializado. A venda na planta refere-se a uma casa ou apartamento que ainda não foi construído. Essa transação é dividida em duas partes. Na primeira, a incorporadora comercializa as unidades para fazer caixa e poder transformar aquela maquete caprichada em concreto e tijolos.
Na segunda, o comprador obtém um empréstimo bancário. A incorporadora recebe sua parte do dinheiro e o futuro proprietário passa a tratar com o banco. Tudo muito lógico, não fosse uma característica específica desse setor. “O mercado imobiliário é altamente alavancado, opera com valores elevados e prazos muito longos”, diz o economista Miguel Ângelo Arab, consultor do anuário AS MELHORES DA DINHEIRO. “Qualquer alteração nas condições tem consequências muito profundas.” Foi o que ocorreu em 2015.
O comprador que havia feito cálculos cuidadosos para ajustar a prestação ao bolso viu-se, repentinamente, sem renda familiar suficiente, devido à alta da inflação e do desemprego. Para piorar, os bancos fecharam as torneiras do crédito. A solução foi desistir do negócio, daí o aumento nos distratos. Cada uma dessas decisões veio com choro e ranger de dentes. “Ninguém compra um imóvel hoje para desistir daqui a três anos”, diz o advogado Marcelo Tapai. “Esse é um processo doloroso, que causa prejuízos, e só ocorre por um bom motivo.” Se esse for o seu caso, conheça os seus direitos e as armadilhas legais estabelecidas pelas vendedoras para evitar os distratos.
Aqui é preciso entrar, ainda que brevemente, nos meandros jurídicos. A compra de um imóvel na planta não representa a assinatura de um contrato de compra e venda, mas sim a assinatura de uma promessa de compra e venda. Uma diferença irrelevante? Nada disso. “Durante a construção, o comprador não é proprietário de um imóvel, ele está concedendo um financiamento à incorporadora”, diz Tapai. “Quando tomar posse do imóvel, ele então passa a ser proprietário de um bem sobre o qual pesa uma dívida, e sua relação passa a ser com o banco.”
Para não ficar em uma situação frágil, o consumidor deve adotar uma postura cautelosa logo no começo das conversas. Os corretores de imóveis estão mais interessados nas comissões que vão receber se fecharem a venda do que na capacidade de o comprador pagar o imóvel. Assim, desconfie dos argumentos de que “esta unidade está reservada, o interessado ficou de trazer o cheque ainda hoje”, ou ainda “eu não poderia fazer isso, mas vou oferecer uma condição especial para você.” evite, portanto, qualquer decisão precipitada ou emotiva. “Nenhum negócio deveria ser fechado antes da terceira ou quarta visita ao stand de vendas”, diz Tapai. “Isso ajuda a reduzir a carga emocional do negócio.
Se as contas parecem fazer sentido, é hora de ler o contrato com lupa. Segundo um consultor com experiência no setor, em alguns casos a incorporadora estabelece uma multa de 20% do valor do imóvel em caso de desistência antecipada. “Como esse é o percentual que ela precisa para erguer a obra, na prática ela zera seus custos se o comprador desistir”, diz ele. Multas desse tamanho são consideradas abusivas e podem ser contestadas na Justiça. Também não aceite cláusulas que especificam que o negócio é irretratável.
“Não se pode impedir a outra parte de desistir de um negócio, o máximo que se pode fazer é impor uma penalidade em caso de desistência”, diz o advogado. Se houver qualquer desconfiança de que não será possível obter ou pagar um financiamento bancário, é hora de desistir. Segundo a advogada Maria Inês Dolci, coordenadora da associação de consumidores Proteste, o consumidor tem o direito de desistir da compra a qualquer momento, desde que ainda não tenha tomado posse do imóvel.
“Ao receber o imóvel, o comprador perde o direito de devolvê-lo à incorporadora”, diz ela. “Se não conseguir honrar as prestações, ou se não conseguir um financiamento, ele estará inadimplente e corre risco de execução.” Assim, se as contas estiverem dando sinais de não fechar é não tomar posse do apartamento. “Enquanto estiver na primeira fase, antes das chaves, o comprador tem mais direitos.” E se prepare para dias tensos. Enquanto estava pagando as prestações, você era uma fonte de alegria para a incorporadora.
Ao exigir o distrato, você passa a ser um problema, e as empresas não vão tornar seu caminho mais fácil. Para sua sorte, tanto a lei quanto a jurisprudência, que é interpretação na norma legal pelo Judiciário, estão a seu favor. “Está pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça que o cliente tem direito ao distrato, e que a incorporadora poderá reter, no máximo, 15% dos recursos já depositados, para compensar os gastos com comissões e publicidade”, diz Maria Inês.
“Outro ponto que também é pacífico é que a devolução tem de ser feita de uma só vez, a incorporadora não pode pagar em prestações.” Isso vale ainda que o cliente esteja inadimplente em algumas parcelas. Provavelmente será necessário recorrer aos serviços de um advogado. “Muitas empresas se aproveitam de um momento de fragilidade financeira do comprador para impor retenções maiores, multas ou pagamentos parcelados”, diz Tapai. “Nesses casos, a recomendação é não assinar nada nem receber qualquer valor, pois o prejuízo pode ser bem maior.”