03/06/2016 - 20:00
A cena é clássica nos filmes: suspeito de burlar as regras de Wall Street, o executivo engravatado é retirado algemado do escritório. Não é um acaso. Desde 2009, isso ocorreu mais de cem vezes na vida real. A Securities and Exchange Commission (SEC), agência reguladora do mercado de capitais dos Estados Unidos, mandou 43 pessoas para a prisão, dentre um total de 91 condenados. Além das sentenças, ela arrecadou cerca de US$ 2 bilhões em multas.
Nesse período, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia brasileira que exerce atividade semelhante à da SEC, julgou 285 processos por irregularidades e aplicou R$ 1,5 bilhão em multas. Porém, o xerife do mercado de capitais brasileiro tem bem menos poder que o colega americano. Aqui, nenhum malfeitor acaba preso e o dinheiro das multas engorda apenas os cofres do Tesouro. Quando a CVM poderá tornar-se uma barreira tão eficaz e temida quanto a SEC?
Aqui, há dúvidas até sobre quem vai comandar a autarquia nos próximos meses, enquanto corre o processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff. O atual comandante da CVM, Leonardo Pereira, que assumiu em julho de 2012, está confiante de que terminará seu mandato, que expira em 15 de julho do ano que vem. Ele diz não temer o destino do jornalista Ricardo Melo, presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Mesmo tendo sua estabilidade garantida no estatuto da EBC, Melo foi exonerado dois dias após a posse de Michel Temer na Presidência.
A decisão foi suspensa pelo ministro José Antonio Dias Tóffoli, do STF, na quarta-feira 1, e o assunto permanece em aberto. Enquanto isso, Pereira disse ter consultado um especialista sobre o tema. “O estatuto da CVM não permite a demissão, porque eu fui sabatinado pelo Senado”, disse ele à DINHEIRO. Pereira se referia ao sexto artigo de uma Medida Provisória de 2002, que determinou que tanto o presidente quanto os quatro diretores sejam nomeados pelo Presidente da República apenas depois de serem aprovados pelo Senado, o que trouxe estabilidade ao comando da autarquia desde então.
A regra é clara. Presidente só sai antes do fim do mandato em quatro casos: morte, renúncia, condenação judicial ou processo administrativo disciplinar. Ao menos por enquanto, indicar um novo nome para a autarquia não parece estar no topo da prioridade do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. “Convivi com o Meirelles por um ano e meio e sempre me pareceu que ele preza a CVM, até por ter vindo do mercado e saber como as coisas funcionam”, diz o advogado Luiz Leonardo Cantidiano, que já comandou a CVM.
“Mas não acredito que ele vá resolver essa questão nos próximos três meses, porque há coisas mais urgentes. A presteza vai depender do trânsito de Pereira com o ministro.” Perguntado sobre sua proximidade com o Ministro da Fazenda ou se já havia se encontrado com ele, Pereira disse que não poderia comentar o assunto. Se ficar no cargo, Pereira tem imensos desafios diante de si. Um deles é o combate ao uso da informação privilegiada para comprar ou vender ações. Para tentar coibir o chamado insider trading, CVM, Bolsa e as associações de mercado lançaram, na semana passada, uma cartilha para definir quais práticas são ou não legítimas.
Pereira, marcou presença. E ouviu críticas. “Nunca vimos alguém ir para a cadeia no Brasil por insider trading”, disse Guilherme Vicente, vice-presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec). “As multas e penas são pouco duras e, nas poucas ações em que há o envolvimento do Ministério Público, o cumprimento das sentenças normalmente é trocado pela prestação de serviços.” Nos relatórios em que presta contas à sociedade, a CVM faz um esforço para mostrar que sua atuação é eficaz.
Nos 285 processos que examinou entre 2009 e 2015, ela aplicou 737 multas. Houve 886 absolvições e nenhum dos acusados sofreu uma cassação. Parte disso decorre de uma solução que é freqüente nas decisões da CVM, a emissão de um Termo de Compromisso. Nesse documento, em vez de ser condenado, o executivo reconhece que fez algo heterodoxo e se compromete (daí o nome) a não repetir a façanha. “O uso do Termo de Compromisso em grande escala impede a elaboração de uma jurisprudência”, diz Vicente, da Amec.
Se a CVM publicasse sentenças, o Ministério Público teria princípios para nortear sua atuação. A proliferação dos processos não ajuda a melhorar o cenário. As pilhas de papel nas mesas dos técnicos vêm crescendo dez vezes mais rápido do que os julgamentos. Entre 2009 e 2015, 566 novos casos foram protocolados. Uma dor de cabeça recorrente para Pereira, os quatro diretores e 15 superintendentes da autarquia é falta de pessoal e de recursos. São apenas 566 funcionários. Entre 2011 e 2014, foram aplicadas multas de R$ 311,2 milhões. Desse total, apenas R$ 32,6 milhões, pouco mais de 10,5%, foram efetivamente pagos.
A CVM não recebeu um centavo. Segundo um ex-diretor, já faltou dinheiro para renovar a licença do antivírus dos computadores, e é raro haver verba para mandar os técnicos fazerem viagens de inspeção. De acordo com projeções do SindCVM, que representa os funcionários, há um déficit de 500 servidores. O último concurso foi realizado em 2010. Em 2015, a CVM solicitou ao Ministério da Fazenda permissão para contratar 89 funcionários, sem resposta. O pedido foi reenviado neste ano. Se aprovar a solicitação, a Fazenda encomendaria ao Ministério do Planejamento o pedido para realizar um concurso. Resumindo, não é para já.
Enquanto isso, analistas e investidores minoritários, como os da Eletrobrás e da GVT, ficam na dependência das decisões da autarquia (leia mais ao final da reportagem). O problema é agravado porque uma das diretorias ainda está vaga. O mandato de Luciana Dias expirou em dezembro de 2015 e seu sucessor ainda não foi indicado. Pela regra, o nome é sugerido pela Presidência da República e aprovado pelo Senado. “Que eu saiba, não houve nem a cotação de nomes porque isso não era prioridade de Dilma Rousseff, nem havia clima para aprovação no Legislativo”, diz Cantidiano. “Todas as agências reguladoras estão sucateadas.” Cantidiano sabe do que fala. Ele presidiu a CVM entre 2002 e 2004, tendo renunciado ao cargo um ano antes do fim do mandato.
—–
Matérias controversas
Duas decisões da autarquia que chacoalharam o mercado
A decisão
A CVM condenou a Eletrobrás a pagar multa de R$ 500 mil, valor máximo, por ter permitido que seu controlador, a União, votasse em uma assembléia que discutiu a renovação antecipada de contratos de concessão de geração e transmissão de energia elétrica, em dezembro de 2012. Havia conflito de interesses entre a companhia e a União, uma vez que a renovação antecipada previa redução de receita às geradoras. De acordo com a Lei das Sociedades Anônimas, em caso de conflito de interesses, o acionista ficará impedido de votar.
A repercussão
A decisão abriu um precedente inédito para casos em que o acionista controlador em sociedades de economia mista vota contra os interesses da companhia
Quando
Maio de 2015
A decisão
A Vivendi foi acusada de usar o banco de investimentos Rothschild para comprar ações da GVT sem informar que ele não era o destinatário final dos papéis. A companhia francesa ainda fechou a aquisição de opções de derivativos do fundo Tyrus Capital, mas anunciou que havia comprado ações e o controle da operadora brasileira, dias antes do leilão da Telefônica para a compra dos papéis da GVT.
A repercussão
Por ter induzido ao erro ao divulgar fato relevante com informações imprecisas e incompletas, e por não ter detalhado as condições da aquisição da operadora, a companhia aceitou pagar R$ 150 milhões para extinguir o Processo Administrativo Sancionador.
Quando
Dezembro de 2010