Antes que março chegue ao fim, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deverá anunciar a liberação de um financiamento para uma muito necessária obra de infraestrutura. Cerca de US$ 150 milhões (R$ 472 milhões) em recursos do banco vão financiar a ampliação e a reforma do terminal três do aeroporto da capital, além de custear a modernização de outros três aeroportos regionais. Essa cifra é pequena diante dos R$ 162,3 bilhões liberados pelo banco nos 11 primeiros meses de 2014, e seria apenas mais um entre os quase 400 créditos concedidos, não fosse por um detalhe: os aeroportos em questão estão muito longe do Brasil.

O principal deles chama-se José Marti e fica em Havana, capital de Cuba. O crédito foi acertado ainda em 2013, durante uma visita de Fernando Pimentel, então ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, a Havana. Para um país em crise e carente de financiamento para projetos de infraestrutura, como o Brasil, essa política externa com recursos públicos do BNDES tem sido mal-vista pelos especialistas. Faz sentido financiar projetos no Exterior com o dinheiro de um banco criado para fomentar o desenvolvimento nacional? Somente a ilha dos irmãos Castro recebeu US$ 59,5 milhões nos três primeiros trimestres de 2014, data do último dado divulgado pelo BNDES.

Ao longo dos quatro anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff, Cuba obteve cerca de US$ 666 milhões em financiamentos do BNDES, concedidos diretamente ao governo em Havana ou emprestados para empresas brasileiras que realizaram trabalhos na ilha. Na ponta do lápis, entre 2011 e 2014, o país de Fidel e Raúl tornou-se o quinto em importância na lista de destinos do dinheiro liberado por Luciano Coutinho, presidente do banco, obtendo 7,5% dos créditos concedidos. Esse avanço colocou Cuba à frente de parceiros comerciais importantes do Brasil como Inglaterra e Holanda, e representa uma mudança significativa em relação aos governos anteriores.

Apesar do percentual crescente ao longo dos últimos mandatos presidenciais, o farol do socialismo caribenho nunca havia superado a décima posição na lista de prioridades do BNDES. O passeio dos nossos dólares pelas ruas de Havana não é um caso isolado da guinada estratégica do banco. Entre 1999 e 2002, segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, quase dois terços dos financiamentos concedidos para operações internacionais destinavam-se a clientes nos Estados Unidos, a Embraer em especial.

Operações em países como Cuba, Venezuela, República Dominicana ou Angola tinham importância marginal. Isso mudou pouco no primeiro mandato de Lula, entre 2003 e 2006, mas, a partir de 2007, as operações ligadas ao mercado americano caíram para o terceiro lugar. Quem liderou os recebimentos foi Angola, ainda hoje um parceiro comercial pouco relevante. Em 2014, as exportações brasileiras para o país africano totalizaram US$ 1,26 bilhão, pouco mais de 0,56% dos US$ 225,1 bilhões enviados para fora no ano passado.

EXIMBANK Usar recursos públicos para financiar exportações das empresas nacionais é uma prática antiga. O melhor exemplo é o do Eximbank americano, fundado em 1934. Em mais de 80 anos, ele financiou US$ 800 bilhões em exportações. Seu modelo foi copiado por toda a Europa e pelo Japão após a Segunda Guerra Mundial. Hoje, há cerca de 50 entidades estatais ou de economia mista ao redor do mundo, que usam dinheiro público ou de mercado para sustentar as empresas nacionais. O escopo se ampliou para os investimentos em infraestrutura a partir dos anos 1970.

A lógica é a seguinte: um país pobre precisa de um porto, mas não tem capital para construí-lo e as receitas geradas pela operação não são suficientes para atrair investidores privados. O banco financia a empreitada, com a condição de que os insumos e a mão de obra sejam contratados no país de origem, conceito que se convencionou chamar de exportação de serviços. “Esses bancos são essenciais para garantir a competitividade das exportações, e nos países desenvolvidos há dotações orçamentárias específicas”, diz o economista Andrea Calabi, ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e que presidiu o BNDES entre 1998 e 1999.

Calabi foi o único dos oito ex-presidentes do BNDES procurados pela DINHEIRO que aceitou comentar publicamente a política externa do banco. Dois deles, embora defendam os empréstimos e tenham trabalhado no governo petista, preferiram ficar no anonimato, o que ressalta a controvérsia desse debate atualmente. Uma observação dos números mostra que o BNDES se desviou da rota tradicional. O crédito de US$ 150 milhões para os aeroportos é apenas mais um dos projetos financiados pelo BNDES na ilha de Fidel Castro. O mais famoso deles é o Porto de Mariel que, a um custo de US$ 957 milhões (US$ 682 milhões para o banco), usou o mesmo modelo de financiamento direto.

No entanto, na lista de desembolsos do BNDES aparecem projetos para mecanização da colheita de açúcar e arroz, projetos de turismo, compra de veículos e financiamentos para a indústria farmacêutica local. Boa parte dessa estratégia está baseada na visão de Marco Aurélio Garcia, assessor especial de Dilma Rousseff, que defendeu uma integração econômica mais aprofundada do Brasil com outros países da África e da América Latina, a chama política de integração sul-sul. Para os especialistas, isso faria sentido se a economia brasileira estivesse crescendo e solucionando seus gargalos em infraestrutura, mas torna-se uma política equivocada na conjuntura atual.

“A ideia do BNDES de financiar obras em Moçambique, Cuba e outros países é gerar valor adicionado e emprego no Brasil, mas isso depende do custo de oportunidade dos recursos”, diz o economista Mauricio Pinheiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “Um real investido no porto de Cuba significa um real a menos em projetos de infraestrutura no Brasil, algo que tem de ser analisado no momento em que os recursos estão mais escassos. Muitos desses investimentos gerariam um impacto muito maior no Brasil.”

Para o banco, apoiar exportações e gerar desenvolvimento para os brasileiros não são ações excludentes. Em nota enviada à DINHEIRO, o BNDES declarou considerar “um falso dilema” a escolha entre financiar obras de infraestrutura no Brasil ou em outros países. “Em 2014, o BNDES desembolsou cerca de R$ 68 bilhões para projetos de infraestrutura, enquanto que, para o financiamento à exportação, o total de desembolsos foi de US$ 5 bilhões”, informou o banco. Segundo o BNDES, o financiamento às exportações de bens e serviços de conteúdo nacional gera emprego e renda no Brasil.

Os economistas questionam esse ponto de vista. Sérgio Lazzarini, professor do Insper em São Paulo e um estudioso do BNDES, avalia que o papel da instituição tem de ser repensado. “Ele é um banco que deve preencher lacunas do mercado de capitais, emprestar a empresas que precisam de recursos e para projetos que gerariam impactos positivos para a economia e para a sociedade brasileiras”, afirma. “E esses empréstimos têm de ser transparentes.” Lazzarini sublinha um dos pontos mais criticados na atuação recente do banco. Apesar de usar recursos públicos, o BNDES não divulga os valores e as condições de empréstimo para as obras fora do Brasil.

Quem está sendo beneficiado? Qual o custo desses empréstimos? A única informação pública são os valores consolidados por país (veja ao lado). Na nota enviada à DINHEIRO, o banco informou que “respeita alguns limites que são comuns às agências de crédito a exportação, para não prejudicar a competitividade do País em concorrências internacionais.” O sigilo tem levantado críticas. “O BNDES foi idealizado para impulsionar o desenvolvimento econômico e social do Brasil, não para gerar empregos no exterior com dinhero público”, diz o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), que questionou duramente Coutinho durante uma audiência na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, no início de 2014 (leia entrevista abaixo).

————-

“O BNDES faz cortesia com o chapéu alheio”

O senador Álvaro Dias (PSDB – PR) tem sido um crítico contumaz da política de financiamentos dos BNDES a obras fora do Brasil. Para ele, o banco está fazendo “uma cortesia com o chapéu dos trabalhadores brasileiros”, e o assunto merece ser investigado em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Ele falou com a DINHEIRO:

Por que o senhor critica o sigilo nos empréstimos internacionais?
Esses empréstimos são feitos para financiar obras contratadas sem licitação pública, o que estimula a corrupção internacional. Isso é errado, e eu combato essas práticas desde 2005. O sigilo permite, por exemplo, que o governo perdoe empréstimos concedidos a ditaduras africanas, como a Guiné Equatorial. E o pior é que o único fim do perdão desses empréstimos é permitir que os países contraiam novas dívidas junto ao Brasil.

Como combater isso?
Apresentei um projeto na Comissão de Relações Exteriores do Senado que impede a concessão de empréstimos sigilosos e acaba com o sigilo nos empréstimos a outros países. O projeto obteve um parecer favorável do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), mas o senador Jorge Viana (PT-AC) pediu vistas. Mas acho que é o caso de convocarmos uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o tema.

Por que esses empréstimos provocam problemas?
O BNDES foi idealizado para impulsionar o desenvolvimento econômico e social, mas agora que ele está usando dinheiro público para gerar empregos no exterior, ele perdeu sua função social. O governo deveria tirar o “S” do nome do banco, já que ele está fazendo uma cortesia com o chapéu alheio, o chapéu de milhares de trabalhadores brasileiros.