A Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que limita o aumento dos gastos públicos com base na inflação do ano anterior, é vital para o ajuste fiscal e o reequilíbrio das contas públicas. Até outubro, o governo de Michel Temer espera conseguir a aprovação no Congresso. Armando Castelar, coordenador de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV), diz que três motivos ressaltam a importância da proposta: o menor crescimento real do gasto público abrirá espaço para reduzir as taxas de juros; o ajuste contínuo, mesmo que gradual, é mais eficaz para restabelecer a confiança; e a medida evita a armadilha de o Executivo ter de determinar qual gasto aumentar e qual cortar. “Agora, terá uma transparência maior sobre onde alocar recursos públicos”, diz ele. A proximidade dos 100 dias do novo governo mostrou que a economia vive de credibilidade, algo que andou em falta nos últimos anos. “A credibilidade da equipe econômica atual é maior, portanto isso impacta bastante nas expectativas, que acabam sendo fundamentais para onde a inflação, de fato, vai”, afirma Castelar.

DINHEIRO – A aprovação pelo Congresso do PEC do teto dos gastos públicos deve ser um divisor de águas?
ARMANDO CASTELAR  –
 Acredito que sim. Observamos, nos últimos anos, um crescimento muito forte e real dos gastos públicos. Pelas estatísticas, de 1997 até 2015 houve um aumento além da winflação de 6% ao ano, em média, o que, obviamente, complica toda a situação da economia. Implica, por exemplo, no Banco Central ter de manter os juros mais altos para segurar a inflação. Quando passar a ter zero de crescimento real, o BC vai ter espaço para baixar juros e, portanto, o País terá uma economia bem diferente. Existe um outro elemento importante. Inúmeros grupos recorrem ao gasto público para defender seus interesses, cujo resultado é aumentar o gasto. Agora, terá uma transparência maior sobre onde alocar recursos públicos. Creio que, como amadurecimento da democracia, isso também vai ser importante. Mas, para a economia, e mais ainda na dinâmica da dívida, a PEC será fundamental.

DINHEIRO – Quais são os problemas da não aprovação?
CASTELAR   – 
Se não colocar um limite nos gastos, os déficits serão crescentes e a dívida pública vai explodir. Ela tem uma função muito espalhada, como principal lastro dos fundos de previdência, das seguradoras, e está presente nos bancos. O calote pode arrebentar tudo. A solução que o Brasil historicamente tem é a hiperinflação. Descuidar da dívida pública é condenar o País à volta da hiperinflação, em algum momento não muito distante.

DINHEIRO –Esse risco existe, de fato?
CASTELAR   –
 Com certeza! Esse é o caminho, se não fizer alguma coisa, como impor um limite de gastos, que está sendo colocado como teto. Porque a dívida vem crescendo num ritmo muito forte. Como ela vai aumentando, e se paga juros sobre essa dívida, quanto mais ela aumenta, mais se paga de juros. Se o déficit já está elevado, é preciso emitir dívida para financiar tudo isso. A maneira como o Brasil dá calote, historicamente, é imprimindo dinheiro para pagar a dívida. Isso é um calote, porque o valor real da dívida vai caindo.

DINHEIRO – A mudança de toda a equipe econômica pelo governo Michel Temer é uma reinvenção da economia? 
CASTELAR   – 
Sim, a natureza político-econômica mudou completamente. Mudou no fiscal e no monetário, também. O Ilan Goldfajn, presidente do BC, disse que, de fato, vai perseguir a meta de inflação para o ano que vem. O mercado foi até surpreendido porque imaginou que teria algo um pouco mais parecido com os últimos anos. Ele disse, por exemplo, que as condições estão colocadas, mas não como o mercado previa. Se insistir em manter os juros aonde estão, a inflação vai conseguir chegar na meta em dezembro de 2017. O mercado tinha uma visão mais leniente de que o BC não atingiria a meta no ano que vem e sairia baixando os juros. Ele enfatizou muito claramente a ideia de que agora as políticas monetária e fiscal trabalharão juntas, com mais restrição fiscal e uma pressão menor sobre a inflação vinda da expansão do gasto. Isso vai abrir espaço para resolver a taxa de juros e a inflação, simultaneamente. Quando um gestor de política econômica promete seguidamente que vai atingir uma determinada meta mas nunca atinge, as pessoas começam a olhar para o que ele faz de verdade. O que se via é que a inflação nos últimos anos, na média, estava em 5,5%. Se promete e não cumpre, sua credibilidade vai embora.

DINHEIRO –Por que, em menos de 100 dias, houve uma mudança de trajetória tão rápida nas expectativas?
CASTELAR  –
 Por uma porção de coisas. Sem dúvida tem um pouco do que vinha sendo feito antes, com a correção de preços, como a gasolina, a energia elétrica e o próprio câmbio. Foi algo muito positivo que foi feito pela equipe do ex-ministro Joaquim Levy, em 2015. A inflação subiu e, obviamente, existe uma pressão para que esses aumentos sejam repassados. A visão é de que ela já deveria ter caído mais, mas está sendo muito pressionada pelos alimentos. Agora, o que existe é que a credibilidade da equipe econômica atual é maior, portanto isso impacta bastante nas expectativas, que acabam sendo fundamentais para onde a inflação, de fato, vai. Portanto, é uma combinação de um processo que vinha ocorrendo com uma força a mais que foi dada tanto pela credibilidade de uma nova equipe, com uma competência reconhecida, como pelo fato de que agora acontecerá um ajuste fiscal.

DINHEIRO – Qual é a análise do trabalho do Joaquim Levy? Ele ajudou a aprofundar a crise?
CASTELAR  –
 O Levy fez um trabalho excelente, em condições extremamente difíceis. Porque a visão dele não era apoiada integralmente pela presidente e nem pela base de sustentação do partido do governo. Ele trabalhou sendo bombardeado permanentemente, mas fez um trabalho muito grande. Primeiro porque estamos vivendo as consequências das políticas erradas feitas nos anos anteriores. Se ele não tivesse entrado e mudado o rumo das coisas, estaríamos numa crise ainda maior. As más políticas teriam continuado por muito mais tempo e a contração da economia seria ainda maior. O Levy fez a correção dos preços e, por isso, o País está começando a sair dessa fase. Se não tivesse feito antes, os preços continuariam fora do lugar e com um problemão em relação à inflação. Acredito que foi uma salvação. O próprio mercado financeiro ficou muito mais otimista quando o Levy foi indicado, então isso deu um fôlego maior ao governo do que ele teria tido sem o Joaquim. A situação começou a degringolar quando uma série de evidências mostrou que as propostas do Levy não seriam implementadas pelo governo. O cenário é que o governo poderia ter seguido impunemente com as políticas que vinha seguindo.

DINHEIRO –O senhor acredita numa reviravolta e o impeachment da presidente Dilma Rousseff não acontecer?
CASTELAR  –
 Acho muito pouco provável. A votação de abertura do processo de impeachment no Senado começou com uma margem pequena, portanto o risco existe. Do ponto de vista da análise, creio que é muito pequena a chance. Mas, por exemplo, para quem vai investir numa concessão, as condições são completamente diferentes se permanecer o governo Temer ou se voltar o governo Dilma. Ninguém vai querer arriscar colocar o dinheiro agora. Vão esperar pela decisão. Existe, de fato, muita gente que está olhando o Brasil por conta das mudanças na política econômica, mas com a expectativa da confirmação do impeachment e desse novo modelo de política econômica. A leveza que se discute como analista não é a mesma de um investidor, que pode esperar mais um pouquinho..

DINHEIRO – O Brasil, portanto, está na lista dos investidores?
CASTELAR  –
 Existe uma demanda e um otimismo em relação ao Brasil muito grande. No exterior, no setor empresarial brasileiro e na própria sociedade. Existe uma expectativa em relação à votação final do impeachment. O Brexit ilustra que, ainda que um cenário que pareça menos provável possa acabar acontecendo, as chances de o novo governo se confirmar são muito grandes, mas não são 100%. Acho que tanto o governo está na expectativa, com propostas que são importantes, como também os investidores, que aguardam essa definição. Uma vez acontecendo, deve ter uma chance grande de que os investimentos comecem, de fato, a acontecer, porque muita gente está de olho em oportunidades no Brasil.

DINHEIRO – Essa é a crise mais grave na economia que o sr. presencia no Brasil?
CASTELAR   –
 Sem dúvida, nunca tinha visto uma contração da economia dessa magnitude, com a queda da renda per capita com essa força. Nossas séries estatísticas nunca tinham visto isso. Existem estatísticas oficiais consistentes das taxas de desemprego, mas uma das adaptações que fazemos mostra que caminhamos para a maior taxa de desemprego da história das estatísticas de mercado de trabalho. É uma contração gigantesca. O investimento caiu, entre 2014 e 2016, mais de 25%. Se há cinco anos alguém dissesse que isso poderia acontecer, 10 em 10 economistas diriam que não seria no Brasil.

DINHEIRO – É possível projetar como vai ser a economia daqui para frente?
CASTELAR  –
 Os setores que vão se beneficiar daqui para frente não são os mesmos que se beneficiaram no passado. Entre 2004 e 2012, os setores que foram muito bem foram comércio, construção civil, intermediação financeira e, numa escala um pouco menor, serviços e transporte. A indústria foi muito mal. A gente tem a idéia de que  foram as commodities, com mineração e agropecuária indo bem, mas não foram. A aceleração do crescimento vinha daqueles que dependiam de crédito. Para frente, o desempenho desses setores será menos pujante. A indústria vai se recuperar, eu acredito, pelo menos em relação aos piores indicadores recentes. Mas vai ter uma mudança na estrutura da produção, vai ter de recuperar o investimento. O consumo não vai crescer tão rapidamente quanto vinha crescendo. Uma série de ajustes já está acontecendo. Nada mais evidente do que o resultado em conta corrente, o déficit de 4,4% do PIB em 2014 deve se transformar num zero a zero neste ano. Uma mudança dramática.

DINHEIRO – Como recuperar a queda de produtividade com a falta de investimento em educação, pesquisa e equipamentos para a indústria? 
CASTELAR   –
 É paradoxal, porque a indústria foi extremamente beneficiada pelo governo, com centenas de bilhões de reais do BNDES, proteção e desonerações tributárias, que eram políticas erradas. Foi um dinheiro gasto e uma indústria não competitiva. A indústria brasileira tem um problema de competitividade que vem do fato da produtividade ter caído. O governo vinha tentando compensar as empresas por elas não serem competitivas, ao invés de fazer políticas que estimulassem essas empresas a se tornarem competitivas. Eram políticas de fechamento da economia, de isenção tributária, de crédito subsidiado, mas nenhuma realmente para aumentar a competitividade. Ao contrário, aumentava a burocracia, a discriminação contra novos competidores, coisas que não alimentavam a competitividade. Isso vai pesar. O que compensa um pouco é que o real está muito mais desvalorizado, então existe um espaço via câmbio para que se recuperem via preço. Agora, o crescimento vem da produtividade e todos vão ter de encarar essa realidade e trabalhar para ter competição, para buscar tecnologia, para buscar eficiência. Vai ser difícil, mas isso é no mundo todo.