02/09/2022 - 4:40
Julho e agosto experimentaram algo pouco comum na economia brasileira: a deflação. Achatado pela Selic de 13,75% ao ano e pela redução do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos combustíveis e da energia elétrica, o índice oficial, o IPCA, ficou negativo em julho em 0,68%. Já o IPCA-15 de agosto, tido como uma prévia, oscilou negativamente 0,73%, maior queda em 31 anos. O exótico fenômeno colocou a taxa para um dígito no acumulado em 12 meses, a 9,6%, e até virou bandeira de campanha de Jair Bolsonaro. “A economia está bombando”, afirmou o candidato à reeleição, durante debate na Band. Vale lembra que a meta para a inflação é de 3,5%.
Outra notícia levemente positiva ara o presidente foi a alta de 1,2% no Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre frente ao trimestre anterior, quarta elevação consecutiva, segundo o IBGE. O problema é que a queda da inflação tem sido alimentada por uma força que o Planalto não quer mostrar: a baixa no consumo geral e na demanda por serviços. E há um arsenal de dados que comprovam essa realidade nada positiva. Pelas contas da Companhia Nacional de Abastecimento, o consumo de carne vermelha, 72% mais cara em 12 meses, está neste ano no menor patamar em três décadas, com 24,8 quilos por habitante. O consumo per capita em 2018 era de 33,9 quilos. Ainda no fogão dos brasileiros, o consumo de gás caiu no primeiro semestre de 2022 e registrou o pior desempenho desde 2014. A venda de botijões teve queda de 4,5% em relação ao período de janeiro a junho de 2021, mesmo com a criação do Auxílio Gás em 2021.
Uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) constatou que 64% dos brasileiros cortaram gastos desde o início do ano, 19% deixaram de pagar o plano de saúde e 16% tiveram de vender algum bem para quitar dívidas. Já o setor de serviços, segundo dados da Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), do IBGE, fechou o primeiro semestre com queda de 10,5%. Ou seja, a deflação não se explica apenas por ICMS em baixa e Selic em alta, mas pela contração dos gastos dos brasileiros. “A inflação levou uma pancada dos combustíveis e da energia, e virou deflação, mas não é uma tendência para os próximos meses”, disse Gabriel Meira, especialista da Valor Investimentos.

“A gente acha que não pode baixar a guarda porque a inflação mais baixa tem grande parte de medidas do governo. A de alimentos, por exemplo, veio acima do esperado” Roberto Campos Neto Presidente do Banco Central.
Para o economista Marcos Gouvêa de Souza, autoridade em varejo e fundador da consultoria GS&MD, as margens das empresas estão comprimidas porque em um ambiente de custos em ascensão e vendas em baixa não tem sido possível o repasse aos preços. “O cenário é desafiador porque o recuo pontual da inflação é resultado de medidas artificiais do governo.”
Por isso, o próprio presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, reconhece que ainda é cedo para festejar o arrefecimento da inflação. “A gente acha que não pode baixar a guarda porque a inflação mais baixa tem parte grande de medidas do governo”, disse Campos Neto, em evento da gestora 1618 Investimentos. “A inflação dos alimentos veio acima do esperado.” Na avaliação do economista Rafael Marques, CEO da Philos Invest, a deflação não deve se repetir. “Pode até incorrer em uma inflação ainda alta para os anos subsequentes, visto que essa diminuição de preço neste primeiro momento pode trazer maior demanda dos consumidores”, afirmou.
Somam-se à queda do consumo o alto endividamento e a inadimplência. O segundo semestre do ano, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC), começou com recordes. Entre os endividados o índice voltou a subir em julho, após dois meses de queda, e atingiu 78% dos lares, contra 77,3% do mês anterior e 71,4% de um ano atrás. Já a proporção dos inadimplentes, chegou ao maior patamar em 12 anos: 29%. À luz de todos os dados, há um contexto bem diferente daquele de inflação domada. E antes de comemorar redução dos preços, é preciso um olhar atento à demanda. Exercício importante para entender as entrelinhas dos discursos animadores de Bolsonaro em sua via sacra para a reeleição.